ZAQUEU: O “HOJE” DE UM MILAGRE EM LC 19,1-10

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ZAQUEU: O “HOJE” DE UM MILAGRE, O ACOLHIMENTO DO SALVADOR, EM LC 19,1-10

 

 

 

Frei Jacir de Freitas Faria, OFM[1]

 

 

Lc 19,1-10 é a conhecida passagem de Zaqueu, o homem de baixa estatura que sobe numa árvore para ver Jesus passar. Isso terá ocorrido na cidade mais velha do mundo, Jericó. Situada atualmente em território palestino, com mais 8.000 anos de povoação interrupta, Jericó era, na época de Jesus, um lugar de comércio de bálsamo e palmeiras, uma rota comercial que gerava muitos impostos para Roma, a terceira maior da Palestina. Herodes, o Grande e seu filho, Herodes Arquelau, fizeram grandes construções em Jericó.

 

Na passagem bíblica de Lc 19,1-10, a frase dita por Jesus, quando entrou na casa de Zaqueu: “hoje, a salvação entrou nessa casa” é a chave de leitura para compreender a intenção de Lucas. O hoje para Lucas é fundamental. A salvação é hoje. Lucas usa quatro vezes esse advérbio em relação a Jesus. No seu nascimento, em Lc 2,11, é dito: “Hoje, nasceu o Salvador”; na sua apresentação pública na sinagoga de Nazaré, em Lc 4,21, Jesus diz sobre si mesmo: “Hoje, se cumpriu a profecia de Isaías”; na casa de Zaqueu, em Lc 19,2, Jesus afirma: “Hoje, a salvação entrou nesta casa”; por fim, na cruz, ao bom ladrão, ele garante: “Hoje, estarás comigo no paraíso.” (Lc 23,43).

 

Observe os detalhes importantes no acolhimento e nos personagens. A pobre e pequena Belém, em hebraico, a ‘casa do pão’, lugar do nascimento teológico de Jesus, acolhe o Salvador de todos e messias de Israel; Nazaré, a cidade da mãe de Jesus, não acolhe o seu Filho como messias; Zaqueu, o pecador público de Jericó, acolhe Jesus como seu salvador; Dimas, nome registrado no evangelho apócrifo de Nicodemos, referindo-se a um ladrão público de Jerusalém que, na cruz, diante da provocação de seu companheiro, que, com ironia, dizia que o crucificado, sendo o Cristo/Messias, poderia salvar a si mesmo, reconhece Jesus como o Salvador, anunciado em Belém. Dimas foi acolhido por Jesus no paraíso, na casa de seu Pai.

 

A lógica desses relatos lucanos consiste no movimento salvífico a partir da misericórdia, assim como todo o evangelho. Salta aos olhos a última cena, na qual Jesus, assim como fez durante toda a sua vida, concede ao último pecador que teve contato, no sofrimento da cruz, a salvação, o perdão, o acolhimento, assim como o pai da parábola da misericórdia, a do filho pródigo (Lc 15,11-32).

 

O personagem Zaqueu, nome que significa justo, puro ou Deus se recorda, dependendo da etimologia do substantivo, age de forma impura conforme a lei judaica, visto que ele cobra impostos, rouba, é um aliado de Roma etc. No entanto, diante do Salvador, ele se converte e promete devolver quatro vezes mais o que roubou. A lei judaica dizia que bastava devolver um quinto para os cofres do templo para, assim, receber a purificação por meio do sacrifício de reparação.

 

Atualizando, o Zaqueu, que, segundo Clemente de Alexandria, um erudito teólogo grego que viveu entre os anos 150-217 E.C., teria tido o nome mudado para Matias e substituído, no apostolado, o traidor e também ladrão, Judas Iscariotes, somos todos nós chamados à conversão constante, a descer da árvore, que por sutileza narrativa é uma figueira, árvore que para o judeu representava a Toráh, a Lei de justiça que o judeu devia ser. Zaqueu não tinha direito de estar numa figueira. Para dizer que ele era um homem justo, Jesus disse que havia visto Natanael debaixo de uma figueira (Jo 1,48). Na outra ponta da linha, Jesus amaldiçoou uma figueira que não deu fruto (Mt 21,18-22).

 

Para Zaqueu, sabendo de sua fé, Jesus lhe disse: “desça dessa figueira, pois, hoje, a salvação vai entrar na sua vida, na sua casa, na sua morada, para sempre.” Milagre? Pode até ser, pois um corrupto se converter é muito difícil. O milagre, no entanto, consiste em abrir-se para acolher Jesus, o Salvador. Com Deus em nossas vidas, o milagre acontece. O resto virá como consequência de nosso seguir adiante na conversão e misericórdia contínuas. E como o mundo está necessitado da conversão de muitos ‘zaqueus de hoje’ que nos exploram, de vários modos e variadas formas.       

 

 

 


[1] Doutor em Teologia Bíblica pela FAJE-BH. Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de Exegese Bíblica no Instituto Santo Tomás de Aquino (ISTA-BH). É membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de dez livros e coautor de quatorze. Último livro: O Medo do Inferno e a arte de bem morrer: da devoção apócrifa à Dormição de Maria às irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte (Vozes, 2019). Coautor de: A releitura do Deuteronômio nos evangelhos. In: KONINGS, Johan; SILVANO, Zuleica Aparecida. (Org.). Deuteronômio: Escuta, Israel. 1ed.São Paulo: Paulinas, 2020, v. 1, p. 187-230. Inscreva-se no nosso canal: https://www.youtube.com/watch?v=z7mkHXtkWq0&t=8s

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