O cuidado e o pastoreio no Sl 22

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SALMO 22: O SENHOR É MEU PASTOR!

O cuidado, ele está comigo, cuida de mim e eu estou com ele.

Frei Jacir de Freitas Faria, OFM[1]

Dando continuidade às nossas reflexões temáticas, quero, hoje, falar do cuidado. Buscarei a inspiração na oração do Salmo 22, em algumas bíblias, Sl 23, por causa da origem do texto traduzido. Se for do grego é 22, se for do hebraico é 23.

Obra-prima de inspiração divina da literatura hebraica, escrito quando o povo voltou para Judá (Palestina/Israel), após cinquenta anos de exílio na Babilônia (587-536 a. E.C.), o Sl 22 ganhou o coração de judeus e, séculos depois, de cristãos mundo afora. Quero compreender o sentido do cuidado nesse salmo a partir da simbologia do pastor e a afirmativa “o Senhor está comigo”.

Comecemos pela primeira. Quando estamos necessitando de um consolo, de um ombro amigo; quando a dor  fere o coração; quando a irmã morte nos visita; quando tudo parece perdido, numa angústia sem fim, nos vem à mente a demonstração de fé no Sl 22:  o Senhor é o Pastor que me conduz, por isso nada me faltará (v. 2).

Ainda que a atividade pastoreio não faça parte de nossa realidade urbana atual, o cuidador de ovelhas tornou-se um arquétipo, um modelo universal de segurança. Por que isso? Para o povo da Bíblia, Deus, o Senhor, é o pastor universal. Sem Ele, nos perderemos todos sem ‘pastagens’, sem a proteção de seu bastão e de seu cajado, dois instrumentos usados pelo pastor para cuidar de suas ovelhas. Com o bastão, um pedação de pau curto, ele orienta, disciplina as ovelhas no pasto. Com o cajado, um pedação de pau curvado na ponta, ele as defende de animais perigosos, trazendo-as para perto de si ou buscando a que se perdeu do grupo. Veja que imagem belíssima de cuidado.

Quem ama tem o outro perto, cuida como uma mãe que protege o seu filho, o bebê, que ainda não tem noção dos perigos da vida. Jesus é o Bom Pastor que, movido pela compaixão, cuida de suas ovelhas, a multidão faminta que o acompanha no deserto, multiplicando cinco pães e dois peixes (Mt 15,29-37). Ser pastor é cuidar, amar o outro sem medida, como um mestre, nos vales e campinas verdejantes. É ser o ombro amigo nos momentos difíceis da vida.

A imagem do pastor se une à afirmativa: “O Senhor está aqui comigo”. Quem ama está sempre junto, num desejo sem medida de estar com o outro sempre, de não perdê-lo nunca. Quando nossos amores se vão para o vale tenebroso da morte, a dor profunda da ausência nos faz sofrer muito. Lá se vai a luz de nossa vida. Pensando nisso, permita-me fazer uma referência ao grande cantor e poeta italiano, Andrea Boccelli, aquele que deixou de ver a luz do sol ainda na adolescência, mas que nunca deixou de perder a sensibilidade do amor eterno, do cuidado. Que nunca ouviu a sua belíssima canção inspirada, com certeza, no imaginário do Sl 22: “Con te Partirò” (Contigo Partirei). A justificativa do partir junto está na afirmativa: “eu sei que você está aqui comigo” (E Io sì lo so che sei con me, con me). E Bocelli canta: “se você não está aqui comigo, falta o sol, falta a luz na minha estrada... E mesmo que você esteja longe, eu sei que você está aqui comigo. Você, minha lua e meu sol. Você comigo e eu com você.” É poesia de enamorados? É, mas a sua fineza está no cuidado, na ternura, na defesa um do outro.

Na poesia de Bocelli, amantes se encontram seguros em navios em alto-mar e em países nunca visitados. No Sl 22, o orante tem duas certezas: a de que em vida está protegido por Deus diante de seus opressores; e a de que, no caminho de volta para a morada eterna, o Senhor continuará com ele, pois irá morar na casa Dele, na mais profunda harmonia, no eterno retorno do ser humano para Deus, lugar do cuidado.

Quero terminar essa nossa reflexão fazendo memória do homem negro, João Alberto, que morreu espancado por seguranças da rede de supermercados Carrefour. Exemplo triste de não cuidado com a vida de nosso semelhante. “Vidas negras importam”. E é preciso dizer mais?

Peço a Deus que esse Sl 22 possa nos recordar sempre o cuidado do outro, numa eterna simbiose de vida. Caso contrário, corremos o risco de o avesso do Sl 22 se tornar realidade, como o caso do testemunho que li, certa vez, de um jovem drogado de Harlem (Nova York), que rescreveu assim o Sl 22: “A heroína é o meu pastor, dela sempre terei necessidade. Ela me faz repousar nas sarjetas, me conduz a uma doce demência, destrói a minha alma. Ela me conduz sobre a estrada do inferno por amor ao seu nome. Ainda que eu caminhasse no vale da sombra da morte, não temerei mal algum, porque a droga está comigo. A minha seringa e a minha agulha me trazem conforto.” Quanto sofrimento, quanta necessidade de cuidado! A droga que tirou a vida do deus argentino do futebol, Diego Maradona. Restam sempre a fé e a esperança de que o Senhor é o meu único Pastor, e nada me faltará. Isso me basta!


[1] Doutor em Teologia Bíblica pela FAJE-BH. Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de Exegese Bíblica no Instituto Santo Tomás de Aquino (ISTA-BH). É membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de dez livros e coautor de quatorze. Último livro: O Medo do Inferno e a arte de bem morrer: da devoção apócrifa à Dormição de Maria às irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte (Vozes, 2019). Coautor de: A releitura do Deuteronômio nos evangelhos. In: KONINGS, Johan; SILVANO, Zuleica Aparecida. (Org.). Deuteronômio: Escuta, Israel. 1ed.São Paulo: Paulinas, 2020, v. 1, p. 187-230. Inscreva-se no nosso canal: https://www.youtube.com/channel/UCwbSE97jnR6jQwHRigX1KlQ