MC 1,29-39: A SOGRA, O DEMÔNIO E O SOFRIMENTO HUMANO

 

A SOGRA, O DEMÔNIO E O SOFRIMENTO HUMANO

 

NA INSPIRAÇÃO DE MC 1,29-39

 

 

 

Frei Jacir de Freitas Faria, OFM[1]

 

O texto que nos inspira hoje é Mc 1,29-39. Trata-se do primeiro dia de ação evangelizadora de Jesus, iniciada na cidade de Cafarnaum, com sua entrada na sinagoga, onde ele exorciza um demônio que o reconhece como Santo de Deus (Mc 1,24). Jesus é reconhecido como exorcista, cena que se repete no texto que iremos refletir.

 

Saindo da sinagoga, Jesus entra na casa de Pedro, com ele e os outros três discípulos que ele havia chamado para segui-lo. Esse gesto tem um significado importante, que veremos mais adiante. A sogra de Pedro estava enferma, com febre alta. Pedro, segundo a tradição, era casado. Um dos apócrifos, Atos de Pedro, conta que ele tinha uma filha de nome Petronília. Ela foi dada em casamento a um jovem fazendeiro de nome Ptolomeu. Sua história é intrigante e está relacionada com o pensamento gnóstico encratita, o qual pregava que a salvação viria pela virgindade.[2]

 

Bom, para a nossa reflexão, proponho as perguntas: Qual o significado dessa ação de Jesus ao curar a sogra de Pedro? Que relação existe entre o demônio e a doença? Qual o sentido do sofrimento humano?

 

O sair da sinagoga de Jesus é o mesmo que dar as costas ao lugar que não produz vida, mas, sim, laços de morte de uma religião que atrela as pessoas à Lei. Entrar na casa com os quatro primeiros discípulos é a demonstração de que a nova comunidade nasce na casa e não na sinagoga, mais tarde, a igreja familiar. Na sinagoga de Cafarnaum havia alguém possuído pelo demônio, assim como a sogra de um dos que seria o mais importante dos apóstolos, Pedro. Ela estava doente, paralisada. Sua enfermidade, conforme a mentalidade da época ((1,34; 3,10-11; Lc 13,10-17), tinha relação direta com a possessão diabólica. A febre alta era o mesmo que estar possuído, pois ela era um dos tipos de demônio que queima e mata (Lc 4,39; Jo 47,52).

 

 

 

Ao tomar a mulher pela mão, Jesus age, pela segunda vez, como exorcista, fazendo um gesto que vence e expulsa o demônio. A cena é também a de um milagre. Diz o texto que, imediatamente, ela ficou curada, levantou-se e começou a servir os discípulos e Jesus. Note-se que foi Jesus que, primeiramente, agiu com o cuidado em relação a uma mulher doente. Lembre-se que era dia de sábado. Não era permitido curar e, muito menos, expulsar demônios nesse dia, ainda mais que fosse de mulher.

 

O verbo grego egheiro, em português levantar-se, é o mesmo usado para falar da ressurreição Jesus (Mc 16,6). Em outras passagens de Marcos, Jesus fez esse mesmo gesto de tomar pela mão para libertar pessoas de demônios (Mc5,41; 9,27; 2,9-11; 10,49). Isaías e o Sl 73 nos diz que o tomar pela mão é o gesto típico da salvação de Deus (Is 41,13; 42,6; 45,1; Sl 73, 23-24). Libertada, a sogra de Pedro passou a fazer parte da comunidade. Pode parecer insignificante a informação de que ela começou a servi-los, mas não o é. Rabinos não se deixavam ser servidos por mulheres. Quem serve é discípulo. Outro detalhe, para Marcos, é que Jesus inicia sua vida pública com uma mulher e termina com outra, formando uma bela inclusão (Mc15, 40-41.47; 16,1-8): a sogra de Pedro e Madalena. 

 

Outra cena interessante nesse evangelho é o fato de que, no dia seguinte, não mais no sábado, uma multidão de enfermos e endemoniados se aglomerou na porta da casa de Pedro para ser curada. Essas duas cenas, a cura da sogra e as outras curas, nos colocam em contato com a questão do sofrimento humano. Viver é sofrer, seja pela debilidade do corpo, por questões psíquicas, e, sobretudo, por questões sociais. O não acesso aos direitos fundamentais do ser humano é uma das grandes causas do nosso sofrimento. O evangelho de Marcos tem clareza quanto a isso. Ele organiza as informações sobre Jesus na perspectiva do enfrentamento dos poderes que geram a opressão religiosa, política, social e econômica. Jesus devolve a vida aos doentes e sofredores, de modo que eles estejam a serviço do Reino de Deus.  

 

 

 


[1] Doutor em Teologia Bíblica pela FAJE-BH. Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de exegese bíblica. Membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de dez livros e coautor de quatorze. Últimos livros: O Medo do Inferno e a arte de bem morrer: da devoção apócrifa à Dormição de Maria às irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte (Vozes, 2019). Coautor de: A releitura do Deuteronômio nos evangelhos. In: KONINGS, Johan; SILVANO, Zuleica Aparecida. (Org.). Deuteronômio: Escuta, Israel. 1ed.São Paulo: Paulinas, 2020, v. 1, p. 187-230. Inscreva-se no nosso canal: https://www.youtube.com/c/FreiJacirdeFreitasFariaB%C3%ADbliaAp%C3%B3crifos

[2] Para mais informações sobre a história apócrifa de Petronília, cf. o nosso livro: O outro Pedro e a outra Madalena segundo os apócrifos. 4 ed. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 43-46.

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