POR QUE OU PARA QUE ME ABANDONASTE? O sentido da morte na Paixão de Cristo em tempos de pandemia (Jo 18,1—19,42)

por-que-ou-para-que-morrer-o-sentido-da-morte-na-paixao-de-cristo-em-tempos-de-pandemia-jo-18-1-17-42-2.docx

 

 

POR QUE OU PARA QUE ME ABANDONASTE?

O sentido da morte na Paixão de Cristo em tempos de pandemia

(Jo 18,1—19,42)

 

Frei Jacir de Freitas Faria, OFM[1]

Sexta-feira da Paixão, dia para refletir o sentido da morte em suas variadas formas. Ela faz parte do trem de nossa história pessoal, mas como é difícil acolhê-la. São Francisco, no ponto alto de sua espiritualidade, a chama de irmã morte. Morrer é um esperançar para os que vão e os que ficam. Perguntas, no entanto, permanecem no nosso coração: Por que morrer? Para que morrer? Será que Deus nos abandonou na hora morte? Ele abandonou Jesus? Qual o sentido do grito de Jesus na cruz? “Meu Deus, para que me abandonaste?” Penso aqui na dor pandêmica dos familiares dos mais de 300 mil que morreram no Brasil, e dos milhões mundo afora.

Para a nossa reflexão, vou tomar o evangelho Jo 18,1-19,42, a narrativa da paixão, morte e ressurreição de Jesus. Os pormenores desse texto são muito conhecidos. Eu poderia falar que Judas, nesse relato, não beija Jesus; que o “eu sou” de Jesus, respondendo a Pilatos, é o mesmo do nome de Deus. Permita-me, no entanto, ater-me somente ao momento final da morte de Jesus, quando na cruz, segundo João, ele apenas diz que “tudo está consumado”. João não fala do seu grito de dor. Recorrendo a Marcos e Mateus, proponho refletir sobre o mistério da morte, seja ela natural ou provocada por pandemias.  

Como seres humanos, vivemos o eterno paradoxo de ter que viver e esperar a morte, de realizar sonhos e conviver com a derrota, de dar e receber, de fazer algo em função de uma recompensa, de sofrer e de se alegrar. Podem parecer coisas opostas, dicotômicas, mas não são. Essa é a condição humana. Assim viveu Jesus. No momento final de sua vida, pregado na cruz, ele soltou um grande grito de dor. Marcos e Mateus escrevem que Jesus disse: “Meu Deus, meu Deus, para que me abandonaste? (Mc 15,34; Mt 27,46). Para Lucas, o grito de Jesus foi: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito.” (Lc 23,46). Já para João, Jesus apenas diz: “Tudo está consumado” (Jo 19,30). Há uma lógica no encontro de Jesus com a morte: o grito, a entrega e a compreensão do sentido da morte como esperança. esperança. Em Lucas e João, Jesus é mais divino que humano. Ele parece não sentir dor como em Marcos e Mateus. 

Explico melhor. Veja que traduzi, não por que, mas para quê? Jesus gritou em aramaico, língua que deu origem ao hebraico. Lamá em hebraico, língua próxima ao aramaico, é lemá, mas também lamá. Jesus disse Lama, seguido de sabachtháni – me abandonaste, que é a junção da partícula interrogativa máh com o complemento le, e significa para quê, podendo também ser traduzido por por quê. Isso pode ocorrer tanto no aramaico quanto no hebraico. O uso do para quê expressa a motivação da morte Jesus. Por isso, que há diferença entre eles. O “porquê” nos remete ao passado, e o “para quê”, ao futuro. A frase dita por Jesus era popular e expressava o sofrimento dos condenados e angustiado. Ele vem do Sl 22,2.

Quem pergunta pelo “porquê” da morte de uma pessoa querida faz perguntas sem respostas: Eu podia ter evitado o acidente? Eu podia ter sido mais cuidadoso com ele ou ela? Eu podia ter perdoado e recebido o perdão? Eu podia, mas não posso mais!

Quem muda a pergunta e diz “para que” se lança para o futuro. Não mais justifica a morte, mas dá um novo sentido para ela. Era o seu momento. Fiz tudo que tinha que fazer, a amei em vida. Seguirei em frente. Mudando a pergunta, a morte ganha um novo sentido. E o luto termina. Jesus, na hora da morte, com o seu grito, entendeu que a sua morte era redentora, salvaria muitos, levaria muitos para a casa do Pai, até ladrões convertidos. Por isso, Jesus morreu entregando o espírito e acreditando que tudo estava consumado.

Mais uma palavrinha sobre a morte. Nesse momento pandêmico de nossa história, a morte, que estava esquecida, voltou a fazer parte do nosso cardápio de cada dia. O que vemos é uma paixão, um calvário vivido nos hospitais mundo afora. Jesus, novamente vive a sua paixão nos infectados, nos seus parentes, e na ação dos profissionais de saúde que fazem de tudo para salvar uma vida. Estamos vivendo uma dor coletiva.

Nesse calvário, vale perguntar pelo “por quê”. E aí vem a resposta. Esse vírus não é maldição de Deus, como propagam alguns. Ele é, sim, uma resposta da natureza que se sente aviltada por nós. A morte aos milhares é responsabilidade dos que não acreditaram na ciência. Vírus, vírus sempre teremos. E como já tivemos!

Na lógica da condição humana, a morte faz parte do nosso viver. No entanto, sempre tivemos dificuldades de compreender o seu porquê. Há os que sonham que, num futuro próximo, a ciência vai pôr fim à morte. No entanto, quando a morte chega, o coração dos que ficam dilacera numa dor sem fim. Uma dor que parece interminável. Uma vontade de ver de novo, mesmo sabendo que novamente na vida terrena isso nunca mais será possível. Aqueles rostos de mãe, pai, filho, filha nunca mais serão vistos de uma forma uma humana, somente pela fé. O entardecer, quando o dia fecha nas suas energias vitais, uma dor súbita chega com muito vigor. Com o tempo, a própria condição humana se encarrega de amenizar a dor, pois libertar-se dela é impossível. A dor se transforma em saudade, memórias de um bom tempo vivido.

Quero concluir com um convite e uma mensagem de esperança. Diante da morte, deixe de perguntar “por quê” e passe a perguntar pelo “para quê”! Verá que o luto vai passar e você seguirá a faina da vida com uma fé em Deus, na vida. Nesse tempo de morte pandêmica, acredite. Tudo isso vai passar. Logo, logo, voltaremos ao “normal”. Um futuro melhor nos espera no “para quê” de tudo isso. Sejamos melhores do que fomos até agora. Coragem, o Deus humanado foi crucificado, passou pela paixão, foi solidário conosco na dor, no abandono e na traição.  Ele venceu. Venceremos.


[1] Doutor em Teologia Bíblica pela FAJE-BH. Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de exegese bíblica. Membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de dez livros e coautor de quatorze. Últimos livros: O Medo do Inferno e a arte de bem morrer: da devoção apócrifa à Dormição de Maria às irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte (Vozes, 2019). Inscreva-se no nosso canal no You Tube: Frei Jacir Bíblia e Apócrifos ou https://www.youtube.com/c/FreiJacirdeFreitasFariaB%C3%ADbliaAp%C3%B3crifos