Madalena e o segredo do Código Da Vinci

Madalena e o segredo do Código Da Vinci

 

Frei Jacir de Freitas Faria, ofm

 Pesquisador dos Evangelhos Apócrifos.
 
www.bibliaeapocrifos.com.br

 

     O grande mérito do filme Código Da Vinci está sendo o de levar milhões de pessoas a ouvir a frase: “Madalena não era prostituta”. Não se pode negar também que o Código Da Vinci desafia a Igreja Católica ao afirmar que ela escondeu verdades sobre Jesus e Madalena, que se reveladas mudaria o curso da humanidade. Quais são estas verdades? Primeira, Jesus foi simplesmente humano e não divino. A sua divindade foi uma farsa que se impôs pela pregação apostólica e pelo Império Romano. O divino de Jesus está atrelado à Igreja Católica conferindo-lhe poder. Tirar o poder da Igreja é desvinculá-la do Divino. Segundo segredo: Madalena era a esposa de Jesus e exerceu o papel de deusa. Foi ela quem recebeu a tarefa de conduzir a Igreja e não Pedro.

    O filme, para quem já leu o livro, logo percebe que a literatura escrita é melhor. O filme atenuou alguns diálogos polêmicos, mas consegue prender a atenção do leitor de Código Da Vinci. Para o público que se depara pela primeira vez com a temática, o filme vai parecer monótono e de difícil compreensão.

   Na verdade, Código Da Vinci se enquadra muito bem no seu gênero literário de ficção e assim deve ser visto. A revelação do segredo parece não convencer o telespectador. Apresentar ou buscar um descente de Jesus é o mesmo que buscar “chifre na cabeça de cavalo”. Terminar mostrando a imagem de Madalena morta debaixo das pirâmides do Louvre é o mesmo que atestar não ter a resposta para pergunta colocada à mesa.

   O grande problema de Código Da Vinci é que ele conta mentira como se fosse história e fala de história como uma quase mentira. Explico-me. Não são reais, por exemplo, alguns dados tidos como históricos: a) A ligação dos Cavaleiros Templários com o Priorado de Sião não procede. B) Leonardo Da Vinci nunca foi grão mestre do Priorado de Sião e morreu declarando fé em Jesus, Maria e anjos e não em uma deusa. C) O Priorado de Sião existe desde 1956. D) A votação no Concílio de Nicéia sobre a divindade de Jesus não foi apertada. Somente dois bispos, dos 318, votaram contra.

    Mas voltemos ao tema que originou a nossa reflexão: Madalena e o segredo, isto seu amor e relação marital com Jesus. Madalena amou Jesus e Jesus teve por ela uma predileção especial. Não precisa ser necessariamente uma relação marital, mas de afinidade e de integração do masculino e feminino, que nos inspira novas relações de gênero, o que também não nos impede dizer que uma relação marital de Jesus não o faria menos divino. Outros diriam que sim, pois isso nos traria um problema teológico grave. O filho (a) de Jesus com Madalena seria neto de Deus. Bom, mas se isso foi o caminho seguido por Jesus, a nossa teologia e nosso modo de ver e se relacionar com Deus também seriam diferente.

   Inspirados em textos canônicos, podemos dizer Madalena viveu intensamente a experiência da paixão e da ressurreição de Jesus. Aos pés da cruz, ela contempla o seu amado morto. A cruz simboliza a morte violenta, o fim de tudo. No entanto, ela quer retê-lo com vida, mas isto não é lhe é possível. Maria Madalena sabe que o seu amado não pode morrer. Por isso, ela não pára na cruz. Sai a caminho, em busca de Jesus. Ela quer encontrá-lo em outro lugar que não seja a cruz, embora esse também seja o lugar daqueles que amam em profundidade. O caminho de Madalena foi de anunciadora do ressuscitado, Aquele que não morreu, mas vive eternamente, ainda que ausente. Madalena foi uma apóstola de Jesus.

     Madalena foi também a apóstola silenciada pelo poder hegemônico masculino.  Em Diálogo do Salvador 139, 12-13, Madalena, Tomé e Mateus são os discípulos escolhidos para receber ensinamentos especiais de Jesus, no entanto, Madalena tem primazia sobre eles. Num livro de oração dos Maniqueus, grupo religioso do séc. III considerado herético, se encontra uma passagem que chama Madalena de Apóstola de Jesus. No entanto, não foi propriamente assim que ocorreu ao longo da história do cristianismo, Maria Madalena foi estigmatizada como mito de pecadora redimida. De prostituta virou santa para morar no imaginário coletivo como mulher forte e exemplo de vida cristã. Infelizmente, esse foi um bem, que para se firmar, teve que fazer uso de inverdades. A ligação errônea das passagens evangélicas que falam dela levou a identificá-la com a prostituta que ungiu os pés de Jesus (Lc 7,36-50). E esse erro, infelizmente, virou verdade de fé. O inconsciente coletivo guardou na memória a figura de Maria Madalena como mito de pecadora redimida. Fato considerado normal nas sociedades patriarcais antigas. A mulher era identificada com o sexo e ocasião de pecado por excelência.

    O Evangelho de Maria Madalena nos fala de uma mulher liderança e apóstola entre os primeiros cristãos. Escrito no ano 150 d.C., este evangelho reflete o pensamento dos gnósticos. Estes acreditavam, dentre outras coisas, que Deus tem a feição de mãe e pai. A nossa origem é integrada e para lá devemos retornar. Madalena era para eles o modelo de gnóstica perfeita, capaz de nos levar à salvação, ao mundo espiritual de onde viemos e queremos retornar. Neste contexto gnóstico, a relação amorosa de Jesus e Madalena é perfeitamente compreensível. Jesus e Madalena são encarnações da realidade espiritual, prefigurada no amor humano. Madalena representa o espírito feminino que se une espiritualmente ao masculino, Jesus. Assim, a unidade que existia inicialmente no Pleroma (Espírito Perfeito) é re-estabelecida no casamento dos espíritos gnósticos.

O apócrifo Perguntas de Maria admite a relação marital entre Jesus e Madalena. Esta opinião, no entanto, foi rejeitada na época por outros apócrifos. O beijo entre Jesus e Madalena, testemunhado pelo Evangelho de Filipe, referido em Código Da Vinci, significa transmissão do saber, conhecimento. Judas também beijou Jesus para dá-lo a conhecer aos romanos. Não podemos afirmar, baseando-se nas tradições canônicas e apócrifas que Jesus e Madalena eram casados. Como dizíamos no início de nossa reflexão, vista por outro ângulo, está questão é pertinente para os nossos dias. A Igreja, historicamente, acentuou muito o sexo como pecado. Gerar a vida numa sexualidade integrada é divino, é de Deus. Jesus não deixaria de ser menos divino se tivesse vivido a sexualidade também na dimensão marital. No entanto, não foi este o seu caminho. Imagino o amor entre eles como o de São Francisco e Santa Clara. Dan Brown não tem razão quando apela para o segredo do casamento de Jesus e Madalena como revolução na fé. Por outro lado, ele põe na pauta do dia a busca de novas relações entre homens e mulheres. Dizer que a Igreja Católica escondeu estes fatos revelados, sobretudo sobre Jesus, sua divindade e relação amorosa com Madalena, e que agora esta verdade está revelada pelas penas de um escritor ficcionista é desmerecer toda a tradição de fé, transmitida pela tradição apostólica e comunidades. Uma farsa não se sustentaria por tantos séculos. Houve brigas internas e disputa de poder no início do cristianismo? Sim. A mulher, Madalena, foi desmerecida na sua liderança apostólica e relegada por ter uma relação especial com Jesus? Sim. No entanto, as conclusões de Dan Brown não se sustentam, porque negam verdades históricas. Mas vale a pena ver Código Da Vinci como ficção.

     Nisso tudo, uma outra conclusão se impõe: Madalena é um misto de paixão, harmonia e plenitude que nos leva ao Sagrado, ao Divino e nos faz cada vez mais humanos! O resto é pura especulação.

 

(Artigo publicado no Jornal Estado de Minas, Pensar, 03/06/2006)