Jornal Opinião - Apócrifos aberrantes

JORNAL OPINIÃO - Apócrifos aberrantes

 

Apresentação geral do autor e o porquê deste livro 
 
Frei Jacir de Freitas Faria, OFM, franciscano, escritor, professor de exegese bíblica no Instituto Santo Tomás de Aquino – ISTA, em Belo Horizonte. Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico, de Roma, frei Jacir é autor de vários artigos e livros, sendo este o seu décimo segundo e o quinto sobre os apócrifos. Os meus livros sobre os apócrifos são: As origens apócrifas do cristianismo. Comentários aos evangelhos de Maria Madalena e Tomé (Paulinas); O outro Pedro e a outra Madalena segundo os apócrifos. Uma leitura de gênero (Vozes); Vida Secreta dos apóstolos e apóstolas à luz dos Atos Apócrifos (Vozes) e História de Maria, mãe e apóstola de seu filho, nos evangelhos apócrifos (Vozes). www.bibliaeapocrifos.com.br
Apócrifos aberrantes é o resultado de uma longa pesquisa sobre os sete primeiros séculos do cristianismo, interpretados a partir dos apócrifos. Excelente introdução histórica, crítica e pastoral aos oitenta e oito apócrifos do Segundo Testamento. Poder e heresias fazem parte dessa luta que discutiu e definiu vários temas, como ressurreição, trindade, humanidade de Jesus, episcopado, até a solidificação em um único ramo, o hegemônico, vencedor das batalhas entre os inúmeros cristianismos. A literatura apócrifa registrou os outros modos de pensar do cristianismo de forma aberrante: a infância de Jesus, liturgia sexual; complementar ao pensamento hegemônico: história de Maria; alternativa: Madalena, a amada de Jesus, mas nunca prostituta. O livro foi editado pela editora Vozes, na coleção Comentários aos apócrifos.

 
1 - O que este livro traz de novo em relação às outras publicações?
 
Frei Jacir: Considero como novidade nesse livro a releitura que fiz da história do cristianismo na ótica dos apócrifos. Manuais de história da igreja não faltam, mas não na perspectiva dessa literatura, ou melhor, dando voz aos cristianismos aberrantes, complementares ou alternativos. Indicarei, de agora em diante, esse livro para quem quiser iniciar o estudo dos apócrifos. Foi Frei Carlos Mesters quem me incentivou a dar início a essa obra. Ele me disse, certa vez: ‘Oh, Jacir, faça um estudo histórico, uma linha do tempo, dos apócrifos para nós, assim como a que temos dos canônicos!” Com a indicação de meu mestre na leitura popular da Bíblia, iniciei a árdua tarefa. O leitor terá à sua disposição uma acurada tabela com os dados históricos de cada século, os elementos do cristianismo oficial em paralelo com as propostas apócrifas. Sempre de forma linear e numa visão de conjunto. Foram anos de pesquisa, se bem que lancei outros livros apócrifos, neste ínterim. Livro para mim tem ficar no forno por muito tempo, enquanto a pesquisa flui. Tive a graça de terminar Apócrifos aberrantes, complementares e cristianismos alternativos – Poder e heresias! em uma viagem de estudo a Israel, no ano passado. Procuro, com meu estudo, mesclar, entre os meus livros, aqueles com linguagem narrativa, como foi o caso de História de Maria, mãe apóstola de seu filho, nos evangelhos apócrifos (Vozes) com outros mais investigativos, como esse. Eles se complementam. Estou finalizando outro livro narrativo, que leva o nome de Infância apócrifa  do menino Jesus. É maravilhoso conhecer as histórias de ternura e travessura do menino Jesus. Estou preparando também a tradução e edição de uma Bíblia Apócrifa, com os textos e comentários.  

2 - Outros biblistas consideram exagerado seu interesse por apócrifos, por acharem que já temos muito o que estudar nos livros que estão na Bíblia. O que o senhor pensa disso?

Frei Jacir: Por aí dizem que sou “o apócrifo”, no bom sentido, é claro! Desde que iniciei a pesquisa sobre os apócrifos, o que já passa de uma dúzia de anos, e, sobretudo com a publicação da pesquisa, sempre me pautei na fé libertadora em seu sentido amplo, na questão social, no pensar e no conhecimento de sua trajetória histórica. Penso que, procurando apresentar de forma crítica e responsável uma nova leitura dos apócrifos, sairemos daquele jargão: “A igreja proíbe, por isso é muito bom ou não serve.” Os produtores cinematográficos e de editoras ganham muito dinheiro com o tema, e a igreja fica a ver navios, não por causa do dinheiro, mas porque vê o seu trabalho evangelizador ser minado de modo não salutar. Dan Brow, com o seu Código Da Vinci, que o diga. Porque o leigo e sobretudo o clero não podem saber que o cristianismo conviveu até o século terceiro com diversas teorias e teologias, num misto de poder e heresia. O cristianismo apócrifo gnóstico, principal opositor daquele se tornou hegemônico, era também multiforme. E, por isso mesmo, se enfraqueceu e foi vencido. No cristianismo hegemônico, a trajetória foi diversa. Ele conseguiu agregar vários modos de pensar teológico, até mesmo apócrifo, num único ramo que se tornou oficial e hegemônico, no quarto século. Os outros foram subjugados a ele, expulsos e cunhados de heréticos, pois pensavam diferente do que fora estabelecido como verdadeiro. A história foi reescrita pelo grupo vitorioso, de modo que parecesse que assim já era desde os tempos apostólicos. O cristianismo vencedor das disputas teológicas foi aquele que firmou raízes no império romano e chegou até nós. Por isso, ele é também chamado de romano e católico, por ter sido anunciado a todo o mundo, com base nos ensinamentos dos apóstolos, sobretudo Pedro e Paulo. Nasce, assim, a cristandade, fundamentada no cristianismo apostólico. Saber isso não diminui a minha fé, mas me coloca no caminho de Jesus. O desafio de estudar a Bíblia canônica continuará sempre. Ler a Bíblia não é começar do livro do Gênesis, mas da vida que ela encerra com a ajuda da pesquisa e da fé. A Bíblia nunca se esgotará na transmissão da experiência com Deus. A questão não é estudar a Bíblia, mas o como ele é feito. O mesmo vale para a Bíblia apócrifa. Gostaria de deixar claro que, com o meu estudo, não me arvoro o direito de canonização dos apócrifos, mas simplesmente o direito de poder me achegar a esses textos, de modo crítico, ecumênico e pastoral. Confesso que muita coisa mudou no modo de viver a fé, quando conheci o Evangelho de Maria Madalena. Somos eternos devedores de uma fé sólida e eficaz aos nossos predecessores que construíram o cristianismo que hoje vivenciamos, mas é salutar e libertador conhecer outras formas de cristianismos, bem como entender a nossa fé a partir desses cristianismos antigos e perdidos.

3 -   Alguns estudiosos dizem que a valorização de apócrifos é perigosa, pois nessas obras estão muitas heresias. Ou seja, há o risco de confundir os leitores. Qual sua avaliação?

Frei Jacir: Não acredito que o leitor seja confundido, mas esclarecido. Saber que os apócrifos estão cheios de heresias não é o problema, a questão é o modo como elas estão sendo interpretadas ou reinventadas. Mas nem tudo nos apócrifos são heresias, na forma negativa que esse substantivo quer nos transmitir. Ser herético é pensar diferente. Pensar diferente é muito bom, pois dele sai o novo ou solidifica o pensamento atual ou, se você quer dizer com outras palavras, o oficial. Creio que a descoberta dos apócrifos, sobretudo os gnósticos, é o grande achado da atualidade, que nos revela o outro lado da moeda na luta desenfreada pelo poder, nos primórdios do cristianismo. Poder? Que poder? Poder de direcionar a fé, de organizar uma instituição hierárquica capaz de salvaguardar a essência da fé em Jesus Cristo, em um só credo e em uma igreja universal. E foi por causa dessa organização institucional do cristianismo que ele sobreviveu e marcou a humanidade em antes e depois de Cristo. Pena que, para isso, os seres humanos daquele tempo tiveram que ser divididos em hereges e oficiais. Ninguém é tão oficial que não tenha nada de herege e ninguém é tão herege que não tenha nada de oficial. Procurei mostrar, nesse livro, que o cristianismo hegemônico, para assim se firmar na história, provou ao império romano a sua antiguidade a partir do judaísmo, sendo ele a realização das promessas do Primeiro Testamento; rompeu com o judaísmo como religião; criou uma igreja e um bispo homem, eliminando o poder de direção institucional das mulheres; colocou um bispo romano para todas as igrejas; criou comunhão universal na fé apostólica com todas as igrejas, tornando-se católico; estabeleceu um credo de fé apostólico; eliminou os vários outros modos de conceber o cristianismo, sobretudo aqueles cognominados de apócrifos aberrantes, complementares ou alternativos; utilizou tradições apócrifas complementares em seus dogmas de fé; determinou a lista dos livros inspirados; fundamentou, nos canônicos e na tradição apostólica, a fé em Jesus, humano, divino e trinitário. Os cristianismos alternativos resistiram ao longo dos séculos. Rondam o nosso imaginário teologias de Tertuliano e Orígenes, dos ebionitas e marcionitas, dos montanistas e arianos. Muitas de nossas práticas e profissões de fé cristã católicas, ortodoxas, gregas ou evangélicas têm também seus fundamentos nas origens apócrifas do cristianismo. Mesmo que queiramos negar os cristianismos antigos, isso não é possível. Eles estão aí e permanecerão sempre no imaginário popular, na fé libertadora e conservadora, no ecumenismo e na ortodoxia. Portanto, nada de confusão, mas esclarecimentos.