Israel carnal: sexo no Talmude

Frei Jacir de Freitas

 

Daniel Boyarin, professor de cultura talmúdica na Universidade da Califórnia, "judeu rabínico" e "feminista", como ele mesmo se auto define, discute com maestria em Israel Carnal a tese que o judaísmo rabínico (sécs. II - VI da era Comum), através de seus Midraxes e Talmudes, trabalhou a questão do corpo e da sexualidade de modo bem diferente ao dos judeus helenistas, incluídos nestes boa parte dos cristãos.

Nesse sentido, duas visões se cristalizaram a partir do II século da e. C., a dos judeus rabínicos que definiam o ser humano como um corpo animado por uma alma, e a dos judeus helenistas e cristãos que entendiam o ser humano como uma alma que habitava num corpo. A primeira serviu de base para criar relação de gênero integrada, capaz de levar a cabo a sublime ordem do Criador: "Crescei e multiplicai-vos!" (Gn 1,28).

A segunda caminhou para um dualismo e conseqüente desvalorização do corpo, o que permanece ainda em nossos dias. Assim o título do livro em questão, Israel Carnal, já é uma tentativa de demonstrar o âmago do polêmico pensamento de Boyarin. Partindo da acusação que Agostinho, citando Paulo, faz contra os judeus:

"Considerai o Israel segundo a carne" (1Cor 10,18), Boyarin procura aprofundar esse pensamento patrístico que distingue o Israel carnal do espiritual, o qual tem como elemento de distinção entre ambos o discurso do corpo e da sexualidade.

Dividido em 7 capítulos, Israel Carnal é o resultado do esforço por entender as conseqüências dessa diferença na relação de gênero e nos aspectos da vida social do judaísmo rabínico que produziu a literatura talmúdica.

No primeiro capítulo: "Considerai o Israel segundo a Carne": sobre a Antropologia e a sexualidade nos judaísmos do final da Antigüidade, o autor apresenta a visão rabínica do corpo e da sexualidade na formação do ser humano como resistência às práticas discursivas e dominantes de outras culturas judaicas e não-judaicas no final da antigüidade. A antropologia rabínica é monística. Ela aceita a carnalidade na sua forma material como sabedoria de Deus.

"Sê abençoado, pois curas todas as carnes e fazes coisas maravilhosas". A sexualidade faz parte do estado original da humanidade, e não de uma degeneração sofrida após a queda.

Esse esforço rabínico de atribuir um valor positivo ao desejo sexual e à sexualidade encontraram resistência. É o que trata o segundo capítulo: A Dialética do desejo: "O Instinto do Mal é muito Bom". Os rabinos acreditavam que tudo vinha de Deus e por isso tudo era bom. O desejo está ligado à procriação. Se o corpo do desejo é o mesmo que procria, como esse pode ser mal?

A tese de Boyarin ganha corpo no terceiro capítulo: Diferentes Evas: Mitos sobre as Origens da Mulher e o Discurso do Sexo no casamento. O modo como os rabinos encaravam e tratavam as mulheres não estava calcado no desprezo cultural do corpo feminino.

Para eles, as mulheres eram tidas como facilitadoras da vida do homem, cuidando de suas necessidades sexuais e reprodutoras, o que não significava negar à mulher uma subjetividade independente, nem mesmo o direito ao prazer (p. 118).

Como conseqüência disso, o casamento e a sexualidade eram vistos positivamente. Já na literatura bíblica vemos que o papel da mulher é subordinado, dominado e dependente, o que possibilitou aos judeus helenistas e cristãos terem uma visão negativa da sexualidade e do corpo, principalmente em relação à mulher.

No quarto capítulo: A produção do desejo: Maridos, Esposas e a Relação Sexual, Boyarin analisa como o discurso do desejo sexual e da interação dentro do casamento afetam a relação homem-mulher na cultura rabínica, como o discurso do poder, conhecimento e prazer se integram para encontrar mecanismos de controle da classe rabínica sobre a prática sexual dos casais e de homens sobre as mulheres na vida sexual.

A conclusão do autor é que por mais que o Talmude insista que a relação homem-mulher deva ser de carinho, intimidade, desejo e de prazer da parceira, a mulher ocupa sempre uma posição subordinada diante do homem dominador, ainda que atencioso.

Além disso, a Torá não controla o que se passa entre um homem e uma mulher na relação sexual. Alguns rabinos chegam a propor regras, como: realizar sexo só no escuro, durante a noite, sem a presença de ninguém, nem mesmo de uma mosca, etc.

No entanto, se a Torá se abstém de interferir na vida sexual de um casal, ela não deixará fazê-lo no que tange ao campo do desejo pelo saber. Nesse âmbito, ela passa a ser a "outra" na vida do homem. É o que trata o quinto capítulo: O desejo pelo saber: a Torá enquanto a "outra". A leitura desse capítulo vai-nos colocar diante de opiniões, até mesmo divergentes, dos rabinos.

Como resistência ao discurso masculino, temos o caso de mulheres estudantes, as quais contestam o fato de serem consideradas parceiras sexuais e reprodutoras, por mais honrosa que seja essa condição. Esse é o polêmico assunto do capítulo sexto: As mulheres Estudantes: A Resistência Interna ao discurso masculino. Berúria é citada como exemplo de mulher que consegue atingir um profundo conhecimento da Torá.

Nm 5,11-31, que trata de um rito para casos de ciúme do marido ou de desvio sexual da mulher, é interpretado de várias formas. Os rabinos palestinos diziam que é importante os pais ensinarem a Torá para as suas filhas, pois quando forem acusadas de adultério, elas saberão se defender diante do marido.

Já os rabinos da Babilônia argumentam o contrário, dizendo que se as mulheres conhecessem a Torá, elas poderiam trair com facilidade os seus maridos, já que saberiam as artimanhas para se defenderem.

Permitir o estudo da Torá às mulheres, seria o mesmo que ensiná-las a infidelidade. Boyarin acredita que "o principal motivo para que as mulheres fossem confinadas ao papel de procriadoras e parceiras sexuais na cultura rabínica era o medo de que, caso isso acontecesse, esse papel fundamental não fosse desempenhado". O que preocupava os rabinos era a perda do controle da mulher da Torá, dois substantivos femininos, altamente estimados, mas que deviam ser mantidos isolados.

Um outro tema referente à sexualidade no mundo rabínico era o do corpo masculino. Boyarin dedica todo o último capítulo do seu livro ao que ele chama de: (Re)produzindo os Homens: A Construção do Corpo masculino Rabínico.

A temática é aberta com a apresentação de textos do Talmude da Babilônia discutindo o tamanho do pênis dos rabinos. O grotesco estaria ligado essencialmente ao corpo reprodutor e, portanto, à reprodução. A obesidade era vista como entrave à atividade sexual e conseqüente procriação.

A descrição que fizemos do caminho percorrido por Boyarin nos leva a concluir que Israel Carnal é um livro de suma importância para o estudo comparado do pensamento rabínico, feito de forma crítica e inusitada. O autor não nega a misoginia na cultura rabínica. Ademais, ele a analisa no interior da cultura judaica e em relação aos valores helênicos e cristãos.

Nisso, Boyarin traz uma contribuição importante para leitura de gênero, tanto na esfera judaica, como na cristã. Melhor conhecendo o judaísmo, mais eficaz será o nosso diálogo inter-religioso. Não menos eficiente será a nossa compreensão do papel da mulher, do homem, da sexualidade e do casamento nas Escrituras.

Outro mérito de Boyarin é o de levar o leitor, mesmo aquele que não tem muita afinidade com a literatura e religiosidade judaico-rabínicas, a mergulhar nesse fascinante mundo, onde as opiniões se misturam sem a pretensão de uma superar a outra.

Muito ele tem a contribuir com a exegese atual, no seu esforço de buscar um diálogo inter-religioso, resgatando, na perspectiva da leitura de gênero, valores do corpo e da sexualidade. Vale a pena quebrar a "casca da noz" para entrar nesta obra que, de per se, não é de fácil acesso.