História como motivo de oração nos salmos

A história como motivo de oração nos Sal

 

 Frei Jacir de Freitas Faria, OFM

 

Introdução

 

Duas coisas devem ser consideradas em qualquer estudo que se queira fazer sobre os Salmos: a) eles foram compostos a partir da vida de fé do povo da Bíblia; b) o conjunto deles é a síntese da Bíblia feita oração. Nos salmos encontramos pessoas e fatos históricos e de fé que juntos formam a experiência de Israel com Deus.

 

No estudo que ora empreendemos, queremos reler os Salmos na perspectiva da história. Vamos procurar descobrir os motivos históricos rezados e conseqüentes imagem e experiência de Deus daí decorrentes. Uma análise exegética do Sl 78 vai nos ajudar a compreender a beleza do encontro de Deus e o ser humano na história.

 

1 – A história nos Salmos

 

Muitos salmos foram compostos no exílio e pós-exílio da Babilônia. Por isso, vários desses são reflexos do drama aí vivido. Por outro lado, a experiência da ação libertadora de Deus no Êxodo é um evento suma importância que foi muito lembrado nos salmos. A memória dessa experiência, com veremos, é transformada em oração. Os motivos que sustentam esse proceder são: a lembrança constante dos fatos importantes da história; o desejo de responder aos apelos proféticos feitos na história; o reforçar a fé amorosa para com Deus; a vontade de reanimar a caminhada; a certeza que a Aliança com Deus não deve ser esquecida.

 

Os Salmos considerados históricos rezam e fazem memória da história do seguinte modo:

 

Sl 44, 2-9: A lembrança dos fatos passados é motivo para recordar a Deus o seu compromisso e lamentar a situação lastimável em que o povo se encontra no momento presente.

 

Sl 66, 5-6: O Êxodo, descrito em linguagem poética, é motivo de louvor e de ação de graças.

 

Sl 68: descreve a gloriosa epopéia de Israel. O povo é forte porque Deus está com ele em todas as circunstâncias.

 

Sl 77: um indivíduo angustiado, fazendo um confronto entre o presente e o passado, se pergunta se houve mudança no comportamento de Deus para com seu povo. Meditando o passado, ele encontra forças e coragem para viver o presente (vv. 6-21). Indiretamente, ele lembra a Deus os compromissos que Ele tem para com o seu povo.

 

Sl 78: é uma meditação sobre o passado. Mostra a bondade de Deus e a freqüente infidelidade do povo. No fundo, tudo serviu para Deus realizar o seu plano e chegar à eleição de Davi, o grande rei.

 

Sl 80, 9-12: os exilados lembram a Deus o esforço que Ele fez para transportá-los Egito e plantá-lo como vinha em Israel. O povo reza para que esse esforço não seja em vão e que Ele possa fazê-los retornar de novo ao país dos pais.

 

Sl 81, 7-11: Deus mesmo fala e lembra ao povo as maravilhas por Ele realizado no passado, o que é rezado de modo que o povo volte a ter fé em Deus e a servi-Lo com fidelidade.

 

Sl 83, 10-11: oprimido por todos os lados por inimigos, o povo pede a Deus que repita as proezas do passado e trate os reis do presente, assim como Ele tratou os de Madian.

 

Sl 89, 10-11: esses versículos fazem parte da introdução do salmo. Eles procuram captar a benevolência de Deus, exaltando o seu poder, manifestado na criação e no passado. Nos vv. 21-38, o salmista lembra ao Deus poderoso a promessa que Ele fez a Davi e que, ao que tudo indica, não está se realizando (v. 39ss.).

 

Sl 95, 8-11: convite a servir a Deus com fidelidade. O povo deve evitar as infidelidades do passado.

 

Sl 105: o passado manifesta a grandeza e o poder de Deus e é motivo de louvor e de ação de graças.

 

Sl 106: é uma confissão nacional. O povo, na sua infidelidade, reconhece o mal cometido. Esse salmo apresenta o passado como lição para o presente e convite à conversão.

 

Sl 107: para mostrar que Deus salva o ser humano de todos os perigos, o salmista enumera uma série de fatos passados, alguns até mesmo desconhecidos a nós. Os fatos do passado são motivos de ação de graças e revelam o amor fiel de Deus.

 

Sl 111: salmo alfabético que, recorrendo à memória histórica, louva Deus pelos seus feitos.

 

Sl 114: hino pascal para ser cantado na liturgia. Ele lembra a libertação do Egito.

 

Sl 135, 8-12: hino de louvor em agradecimento a que fez tão grandes coisas. Deus, ao contrário, não é como os ídolos que não valem nada.

 

Sl 136, 10-24: ladainha com estribilho: “Sim, para sempre é o seu amor”. Tudo que Deus fez no passado é expressão do seu amor para com o povo.

 

Sl 132: lembra a Deus as promessas feitas a Davi e pede que conserve esta fidelidade no presente.

 

Sl 143, 5: o salmista, angustiado, se lembra do passado para poder continuar a crer em Deus.

 

1.1 – Motivos históricos transformados em oração

 

Várias são as situações históricas que o povo se lembrou ao compor os Salmos. As mais relevantes são:

 

Libertação do Egito (18,16; 66,6-7; 68,1-8; 76,7-12; 77,16-21; 78,13; 95,8-10; 5,16-43; 106,7-33; 104,7-9; 114,1);

 

Canaã (16,5-6; 44,3; 68,12-15; 105,12-15; 106,34-46);

 

Aliança (78; 95,8-10; 98,3; 99,6-8; 105; 132,1-2);

 

Ocupação da Terra de Canaã (78; 105; 66; 136; 44; 80);

 

Patriarcas (20,2; 22,5-6; 44,2; 81,5; 105,8-15);

 

Criação (146; 8; 104; 135; 136; 107);

 

Exílio na Babilônia (78; 85,2; 126; 106,47; 137);

 

Passagem pelo mar Vermelho (78; 105; 106; 136);

 

Presença e fidelidade de Deus no deserto (78; 106; 81);

 

Jerusalém como cidade eleita (147; 137; 78);

 

Sião (14,7; 20,3; 68,18-19);

 

Pragas no Egito (78; 105);

 

Templo de Jerusalém (63; 100);

 

Eleição de Davi (78; 89);

 

Moisés (105);

 

Tribos (16,5-6);

 

Sinai (18,8);

 

Idolatria (106).

 

Os motivos históricos acima elencados estão presentes nos 21 Salmos considerados históricos. Embora devamos considerar com L. Sabourin que não existe gênero literário apropriado para esses salmos que aludem ao passado, a não ser os Salmos 78 e 105 (Nota 1 ), onde o êxodo é, o fato, mais lembrado. Eles pertencem aos mais variados gêneros literários: hinos, súplicas, didáticos, lamentações e ação de graça.

 

O tipo de oração decorrente dos Salmos “históricos” mostra que, distanciando-se no tempo da ação vitoriosa e libertadora de Deus no passado, o povo percebe melhor todo o alcance da intervenção histórica de Deus. A vida é percebida numa outra dimensão. E com ela nasce a certeza que é preciso ser fiel ao plano libertador de Deus. A liberdade implica responsabilidade.

 

O êxodo é o fato histórico mais lembrado. Assim como no Pentateuco, os Salmos históricos rezam esse evento como ato fundante da histórica de Israel.

 

A releitura dos fatos históricos se caracteriza por ser positiva, negativa, individual ou coletiva. Assim que, o Salmo 105 relê a história de forma positiva e o 106, de forma negativa. Dos 21 Salmos “históricos”, somente dois (77 e 143) são individuais, sendo os demais, coletivos. Isso quer dizer que o passado do povo é lido e vivido a partir de relações coletivas com Deus e não somente de relações pessoais. O povo rezava assumindo coletivamente a história pessoal. Opressões, alegrias e sofrimentos passam a ser propriedade coletiva.

 

Na história de Israel, o exílio da Babilônia significou a ausência total de luz. O povo já não sabia mais por onde andar, em quais estruturas se apoiar. A experiência de trevas somente começou a desaparecer quando o povo percebeu que somente era a Luz que poderia guiá-los. Quando isso voltou a ser o norte do povo de Israel, vários Salmos foram criados para expressar a confiança, a esperança e o amor de Deus que os levariam de volta à pátria distante e roubada pelo opressor. O Salmo 137 é um bom exemplo para descobrir a esperança de um “povo oprimido que canta e conta a sua história". (Nota 2 )

 

1.2 – Os atributos de Deus nos Salmos “históricos”

 

Os Salmos ora analisados mostram que na história não há um ponto de chegada, mas sim contínuas partidas, as quais convergem sempre para o absoluto, Deus. Essa conclusão nasce da experiência de um Deus itinerante feita pelo povo.

 

A memória da experiência do Êxodo/Aliança como intervenção libertadora de Deus na história de Israel modificou o modo de pensar e relacionar-se com Deus. O povo passou a perceber na sua vida a constante ação da providência divina. Daí nascem várias imagens de Deus nos salmos, a saber:

 

· Escudo e Protetor (18,31; 27,10; 28,7; 33,20; 84,12);

 

· Iluminador (118, 27);

 

· Aquele que proporciona alegria e paz (4,8-9);

 

· Abrigo e socorro para quem crê (7,2; 11,1; 40,18; 62,8; 90,1; 91,2; 94,22; 95,3; 99,13);

 

· Santo e Pastor (amado) de Israel (22,4; 78,41; 80,2; 89,19; 95,7; 100,3);

 

· Libertador e defensor (78,35.56; 83,19; 89,28; 91,1-9; 92,2);

 

· Rochedo que salva (89,27; 92,16; 95,1; 103,1.3);

 

· Misericordioso e fiel (44,27; 78,38; 80,5-8.15.20; 84,2.4.9.13, 86,5.15; 89,9; 103,8; 106,1);

 

· Dos pais (20,2; 44,2; 81,2.5; 84,9);

 

· Poderoso salvador (79,9; 85,5; 86,2; 88,2; 91,1);

 

· Vivo e juiz da terra (82,8; 84,3;94,2);

 

· Terrível e vingador (76,12b; 94,1; 96,4);

 

· Soberano, Grande e Senhor das alturas (l76,2b; 78; 93,4,104,1).

 

O modo como Israel nomeia Deus expressa o seu profundo sentimento de pertença e confiança na ação salvífica de Deus. As imagens refletem a esperança de um povo historicamente sofrido. Deus é grande, está acima de tudo e próximo de cada israelita em particular.

 

Ao elevar a Deus a sua prece, o salmista tem consciência que Ele não necessita saber quais são os seus atributos, mas ele precisa expressá-lo sempre para que a sua recordação o mantenha no Caminho, na Torá.

 

2 – A história rezada no Salmo 78

 

Considerado o segundo maior salmo do saltério, o Sl 78 reza a história de Israel meditando sobre a bondade de Deus, ingratidão e infidelidade do povo. A comunidade que produziu esse Salmo não se esqueceu de deixar registrado o apelo à conversão, penitência e observância da Torá (conduta, caminho, ensinamento, modo de vida). A memória do povo é resgatada. A esperança anima o povo a caminhar na certeza de Deus nunca os abandonará. Cada israelita é um eterno apaixonado por Deus que se revela na história e na criação do mundo. O “hoje” do tempo cronológico aponta sempre para o “amanhã” do tempo cósmico, de onde viemos e para aonde voltaremos.

 

2.1 – Época do Sl 78

 

O Sl 78 menciona alguns fatos que poderiam nos ajudar a datá-lo. Por outro lado, esse parece ser um problema não fácil de ser resolvido. Os estudiosos divergem na opinião. Pessoas e dados históricos mencionados no Sl 78 são: Efraim e seus pecados (v.9.67-68), Egito (v.12), Campo de Tânis (v.12), passagem do Mar Vermelho (v.13), período no Deserto (v.15ss.), pragas do Egito (v.44 ss.), eleição de Judá (v.68), Templo (v. 69), eleição de Davi (v.70). Considerando os dados acima mencionados, podemos falar das seguintes possibilidades de datação do Sl 78:

 

a) Época de Davi (1100-970 a.E.C.)

 

b) Entre a divisão dos Reinos (932 a.E.C) e caída da Samaria (722 a.E.C);

 

c) Época de Ezequias (716-687 a.E.C.);

 

d) Época de Josias e reforma deuteronomista (622 a.E.C.);

 

e) Pós-exílio babilônico (536 a.E.C.).

 

A tendência maior dos estudiosos parece ser a opção b. A composição do Sl 78 estaria situada entre o século X e VIII a.E.C. Motivos:

 

a) estilo arcaico do Salmo;

 

b) elementos da tradição e teologia israelita, como deserto e aliança, são relidos politicamente;

 

c) a escola de Asaf, com esse salmo, expressou a sua crítica à caída do reino de Salomão, causado por Jeroboão I (Nota 3);

 

d) alusão (vv.56-64) à destruição de Silo, causada pela idolatria do Reino do Norte.

 

2.2 – Estrutura do Sl 78

 

Os salmos são poesias e assim devem ser lidos, o que não nos impede de perceber, na maioria deles, uma estrutura literária capaz de evidenciar o objetivo que levou o salmista (comunidade) a compô-lo. E não é por menos que o Sl 78 se encontra na metade do livro dos Salmos. Com isso, Israel que evidenciar a centralidade sua história, rezada e relida com os olhos de Deus. Dito isto, vejamos a estrutura literária do Sl 78 (Nota 4)

 

Introdução sapiencial (vv.1-2): orelha e boca.

 

I – GRANDE PREMISSA TEOLÓGICA (vv. 3-12): a teologia da história

 

Tradição: escutar, conhecer e narrar.

Sujeitos: pais, filhos e gerações.

Objetos: os atos gloriosos, feitos grandiosos, prodígios, obras, leis, comando, testemunho, aliança e fazer.

Reações: escutar, observar, rejeitar, esquecer e caminhar.

 

II - GRANDE CREDO HISTÓRICO (vv. 13-72)

 

a) O canto do deserto (vv. 13-43)

 

vv. 12 inclusão e transição

vv.12-14 declaração de fé no “êxodo”

pecado – revolta - tentação

 

a) No deserto: 15-22

ira de Deus - incredulidade

 

b) No deserto: 23-32 ira de Deus - incredulidade.

ira de Deus - incredulidade

 

c) No deserto: 33-41

revolta - tentação

vv. 42-43 declaração de fé no “êxodo”

v. 43 inclusão e transição

 

b) Canto do Êxodo e da Terra (vv. 44-72)

 

a) No Egito: pragas (44-51) e ira

b’ infidelidade de Israel (52-64): guiar, rebanho, povo, tentação, revolta, pecado, montanha ,

herança e ira.

 

b) Na Terra da promessa (52-72)

b’’ a eleição de Judá (65-72): guiar, rebanho, povo, montanha e herança.

 

2. 3 – Compreendendo o Sl 78

 

Compreender o Sl 78 significa descobrir a história de Israel na perspectiva da oração.

 

2.3.1 - Introdução sapiencial

 

O Sl 78 inicia-se com uma introdução do tipo sapiencial. No vocabulário dos vv.1 e 2 temos, além dos verbos escutar (a Torá), dar (ouvido), abrir (a boca) e expor (enigmas), temos os substantivos boca, orelha, Lei, parábola e enigmas do passado. Esses pertencem ao campo sapiencial. A Torá, que melhor seria não ser traduzida por Lei, mas por caminho, conduta, é o programa de vida de um judeu. Seguí-la é estar no caminho de Deus, na Aliança eterna do Sinai.

 

Orelha aqui representa “o estar atento” e a boca, “o ensinar” o que foi ouvido. O povo escuta atento o que sai da boca de Deus e anuncia com a sua boca o ensinamento recebido no passado. A boca é aberta numa parábola. Jesus, seguidor dessa tradição, não poderia deixar de ensinar com parábolas. E quem puder compreender, que compreenda. Uma coisa é certa: cada israelita é convocado a sentir-se parte integrante da história de Israel. E essa integração se dá no ouvir (shemá).

 

O Shemá Israel (Dt 6,4-9) é um programa de vida: confessar sempre que Deus é Um e amá-lo com todo o coração (razão e sentimentos integrados), alma (dignidade do ser) e força (poder aquisitivo). Israel passará toda a sua vida procurando realizar o Shemá. As revisões de vida nunca deixaram de partir daí. Os primeiros cristãos, da mesma forma, releram e compreenderam Jesus como realização do Shemá. O Sl 78 não poderia ficar fora dessa tradição sapiencial e vital de Israel.

 

2.3.2 – Grande premissa da história (vv.3-12)

 

“O que nós ouvimos e conhecemos, o que nos contaram nossos pais, não o esconderemos a nossos filhos; nós o contaremos à geração seguinte” (Sl 78, 3-4). Além da profundidade expressa por essas palavras, estamos diante de uma belíssima construção poética. Os vv.3 a 12 são chamados de premissa da história, isto é, o salmista oferece dados importantes que devem ser considerados de antemão na leitura teológica que ele fará da história de Israel.

 

São premissas que servem de base para a conclusão. Assim, podemos dizer que nos vv. 3 a 12 Deus é rezado na história como fiel observador da Aliança. Já, o ser humano, por outro sua vez, se esquece dos grandes feitos históricos de Deus. A infidelidade é que não falta na história de Israel, o que ficará claro nos vv. 13 a 43.

 

Para manter a relação de Aliança com Deus, pais e filhos são desafiados a perpetuar a tradição deixada pelos antepassados no seguimento da Torá. Os pais, considerados os transmissores da Aliança, não podem interromper essa tradição. Os filhos, receptores da Aliança, devem conhecer a ação de Deus na história e, no futuro, transmiti-la aos seus filhos.

 

Os pais devem ensinar:

 

1) os louvores de Deus;

 

2) o poder de Deus;

 

3) as maravilhas realizadas por Ele;

 

4) a aliança feita com Jacó;

 

5) a Torá colocada por Deus em Israel.

 

Os filhos devem:

 

1) ouvir o ensinado e contá-lo a seus filhos;

 

2) por em Deus a confiança;

 

3) não se esquecer dos feitos de Deus;

 

4) observar os mandamentos;

 

5) não repetir a infidelidade dos pais.

 

Pai e filhos deviam manter esse ensinamento. O filho não podia trair os ensinamentos dos pais. Ele tinha que manter a cadeia de transmissão dos saberes tradicionais advindos da vivência da Torá, caso contrário seria denunciado como “desencaminhado e rebelde". (Nota 5 ) A infidelidade não podia ser aceita em Israel, não obstante ela ter sido uma marca registrada na história de Israel.

 

2.3.3 – Grande Credo histórico

 

Nos versículos 13 a 72 do Sl 78 encontramos o grande credo de Israel na história. O salmista expressa sua fé na ação de Deus que realizou maravilhas na sua história. A profissão de fé está sistematizada em duas partes: o canto do deserto (vv.13 –43) e canto do êxodo e da terra (vv.44-72). O versículo 12 forma a moldura entre os dois cantos e a premissa teológica. Observe como ele é retomado no versículo 43.

 

2.3.3.1 – O canto do deserto

 

O deserto é o lugar da tentação, do pecado, da infidelidade do povo, da ira de Deus, mas também do perdão de Deus. Antes de entrar nos pormenores desses fatos, o salmista ou a comunidade que produziu o Sl 78, declara abertamente sua fé no Êxodo (vv. 12-14), o que é repetido também nos versículos 42-43. O deserto, lugar da infidelidade, está cercado pela declaração incondicional no Êxodo, visto como ato miraculoso de Deus que divide o mar para o povo atravessar.

 

O esquema cíclico deuteronomistico (Jz 2,11): pecado do povo, castigo de Deus, conversão do povo e novamente, pecado do povo aparece na avaliação da presença histórica do povo no deserto.

 

A ira de Deus e a incredulidade do povo estão no centro do poema para mostrar que esses dois pontos marcam a vida do povo no deserto.

 

Ações do povo e de Deus se contrapõem no canto do deserto. O agir do povo está sempre relacionado a Deus e consiste em:

 

1) rebelar-se contra Deus (v. 17);

 

2) tentar Deus no coração (v.18);

 

3) blasfemar (v.19);

 

4) não ter fé em Deus, na salvação e maravilhas realizadas por Deus e Aliança (v.22.32.37b);

 

5) converter-se e buscar Deus (v.34);

 

6) ter fé em Deus como rochedo e salvador (v.35);

 

7) adular com a boca e enganar com a língua (v.36);

 

8) não ter sinceridade no coração (v.37a);

 

9) afrontar e ofender Deus em lugares solitários (v.40);

 

10) esquecer-se da libertação realizada por Deus (v.42).

 

Já a ação de Deus consiste em:

 

1) dividir o mar em dois (v. 13);

 

2) guiar dia e noite o povo pelo deserto (v.14);

 

3) tirar água de rochas e pedra para o povo (vv. 15-16);

 

4) irar-se contra o povo e reprimir a ira (v. 21.31.38cd);

 

5) dar maná, trigo, carne e aves como comida para o povo (vv. 23-25.27-28);

 

6) massacrar os mais forte e prostrar a juventude (v.31bc);

 

7) ter compaixão e perdoar (v38ab).

 

Vendo o elenco das ações, percebemos o contraste entre as ações do povo e as de Deus. Infidelidade do povo versus fidelidade de Deus marca a passagem do povo pelo deserto. As dez ações básicas do povo lembram os Dez mandamentos recebidos no deserto. Boca, língua e coração, as quais deveriam expressar o amor eterno por Deus, são usados justamente para enganar Deus. Entre fé e não fé em Deus, o povo passa pelo deserto rebelando-se contra Deus.

 

Já o agir de Deus consiste nos feitos maravilhosos, e, sobretudo, na compaixão pelo povo que faz o seu caminho de dor, sofrimento e esperança. Desse modo, Israel reza a sua história. A ira de Deus é a do tipo pedagógica. Ele é o pai que pune o seu filho porque o ama, porque o quer no caminho reto.

 

2.3.3.2 – O canto do êxodo e da terra

 

No canto do êxodo e da terra (vv.44-72), a história é também rezada fazendo memória das ações do povo em contraste com as de Deus.

 

As ações do povo consistem em:

 

1) tentar, afrontar a Deus (v.56a);

 

2) não guardar os mandamentos (v.56b);

 

3) desviar-se do caminho de Deus (v.57);

 

4) idolatria (vv.57-58);

 

5) traição (v.57).

 

As ações de Deus consistem em:

 

1) enviar sete pragas para libertar o povo do Egito (vv.44-51);

 

2) fazer o povo sair do Egito (52a);

 

3) conduzir o povo pelo deserto (v.52b);

 

4) introduzir o povo na terra da promessa (v.54);

 

5) expulsar as nações de Canaã (v.55);

 

6) irar-se contra o povo (v.59);

 

7) abandonar o povo, possibilitando desgraças sobre ele (vv.60-66);

 

8) rejeitar as tribos de Efraim e de José (v.67);

 

9) eleger a tribo de Judá, o monte Sião e Davi (v.68.70-72);

 

10) construiu um santuário nas alturas (v.69).

 

As ações de Deus mostram como Ele, na história, nunca deixa de reafirmar a sua promessa de salvação, seu plano misericordioso para com o seu povo eleito. A eleição da Casa de Davi é um sinal de esperança. O povo, apesar de seus inúmeros erros, sai liberto do Egito, entra na terra da promessa. A casa de Davi é escolhida para apascentar o povo da herança. Desse modo, as teologias davídica e do êxodo caminham juntas.

 

O credo histórico é o sinal evidente que Israel acredita que Deus fez morada em seu meio, na sua história e quer salvá-lo. Deus e o ser humano se encontram na história. A fé em Deus que escuta, julga, perdoa e liberta, mantém o povo no eterno desejo de permanecer nos caminhos traçados pela Torá.

 

3 – A modo de conclusão: Deus na história do povo e povo na história de Deus!

 

O estudo que fizemos sobre a história como motivo de oração nos Salmos evidenciou-nos uma história celebrada e reescrita numa relação de aliança amorosa entre Deus e o povo de Israel. Podemos tirar várias conclusões desse encontro, destacamos essas:

 

· A história é lugar, por excelência, do encontro com Deus. A oração nasce da experiência histórica do povo da Aliança.

 

· A trajetória histórica do ser humano é quase sempre testemunho de sua infidelidade para com o Deus - Libertador do Egito.

 

· O ser humano carrega dentro de si a esperança de que Deus é e será sempre fiel.

 

· A releitura do passado feita pelas comunidades dos Salmos exige conversão.

 

· Os fatos históricos da trajetória de Israel são transformados em oração nos Salmos. Em nossos dias, a memória histórica do nosso povo é precária, o que enfraquece a resistência.

 

· A oração fundada em fatos históricos constitui-se como perspectiva de oração inteiramente nova, algo que não era comum entre os outros povos. A partir da intervenção de Deus na história, os israelitas sentem-se envolvidos no plano de salvação. E na oração que eles lembram a Deus o compromisso assumido por Ele e desenvolvem uma consciência de pertença ao povo de Deus.

 

· A oração dos Salmos, baseada em eventos históricos, nos desafia a repensar o modo como rezamos. Quais são os motivos que nos levam a rezar? Como recuperamos a nossa história nos momentos de oração?

 

· A experiência libertadora de Deus no Egito fez Israel perceber o sentido novo da sua vida. Fidelidade a Deus passou a ser uma exigência, sem a qual, a salvação não seria completa. O passado de libertação implica um futuro promissor, mas sobretudo de responsabilidade e conversão contínua. E é nesse espírito que Israel medita e reza a sua história.

 

· Os Salmos históricos nos ensinam o valor da memória histórica. Um país sem memória está fadado à morte. O que nossos pais nos contaram e viveram, não podemos deixar de contá-lo a nossos filhos. História e memória dessa feita oração são sinais de resistência e de um novo tempo de paz, bem aos moldes do Deus de nossos pais.

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Nota 1 - L. Sabourin, Un Classement Littéraire des Psaumes, Bruxelas, 1964, p. 53.

Nota 2 - Jacir de Freitas Faria, Salmo 137: o povo oprimido canta e conta sua história, Grande SinaL, n. 4, p. 429-452.

Nota 3 - Cf. Gianfranco Ravasi, Il libro dei Salmi. Commento e attualizzazione, Vol. 2, Bologna, EDB, 1985. p. 620.

Nota 4 - Seguimos a proposta de estrutura feita por Ravasi, Il libro dei Salmi, p. 624.

Nota 5 - Cf. André Chouraqui, A Bíblia, Louvores II, Salmos, Rio de janeiro, Imago, 1998, p.64.