O sacrifício de Isaac e sua recepção no judaísmo e cristianismo

A propósito do sacrifício de Isaac

 

A propósito das recepções de Isaac e de Jesus no contexto religioso popular judaico e cristão

 

Frei Jacir de Freitas Faria[1]

 

Em grandes linhas, eu diria que o tema escolhido por André Chevitarese, no seu artigo que o título acima enuncia, é de grande interesse, sobretudo porque parte de um tema central, o sacrifício de Isaac, e o relê sob diversos aspectos, especificamente o do martírio como atualização do mesmo. O sacrifício de Isaac é elemento importante na constituição das três grandes religiões monoteístas e, portanto, não deixa de sê-lo para a pesquisa bíblica e a ciência da religião.

Seguindo a intuição da conclusão do ensaio que afirma que as releituras de Gn 22 fazem parte de um grande leque aberto, no que se refere à diversidade de abordagens que caracterizam o cristianismo nas suas origens, gostaria de propor outros tópicos de reflexão, bem como algumas observações metodológicas e questionamentos.

 

1. Considerações metodológicas


A desenvoltura da tese proposta parece lógica e coerente, no entanto, saliento os seguintes pontos:

· Iniciar a reflexão com a opinião de Crossan e a complementação feita sobre a ligação entre a cultura do estudioso e a popular foi esclarecedor. Contudo, creio que faltou explorar mais a dependência que o estudioso atual tem da cultura popular, principalmente enquanto comunitária. Nesse pormenor, valeria aqui relembrar a valiosa colaboração de Severino Croatto, em saudosa memória, que desenvolveu a teoria da relação intrínseca entre aquele que escreve o texto e seu público. Ele diz que, quando ambos, autor e público-alvo, desaparecem, o texto original faz emergir novos sentidos para outros leitores, de épocas e contextos diferentes.

· Oportuno foi o uso do recurso da imagem, que também nos fornece uma releitura de Gn 22. Faltou, porém, um estudo da recepção de Gn 22 na Torá Oral, nas liturgias sinagogais e na arte, por exemplo, de Caravaggio, Rembrandt, Chagall, entre outros.

· Ficou evidente que a transposição de Isaac como representação de Jesus (o filho imolado) deve-se às releituras. Prenúncio de Deus expondo seu filho Jesus. Sendo assim, quais realmente Chevitarese privilegia na sua análise? As leituras canônicas? As orais? Os apócrifos? As artes? A Imagem exibida em seu texto? Ele cita Gn 22, AJ, AB, 4Mac, entre outras. Mais três autores, destaque para Josefo. Não teria sido oportuno explorar mais a imagem? Já que ela é a novidade na apresentação. Qual é o seu contexto? Sua autoria?

· Na leitura semiótica realizada, faltou estabelecer os pressupostos teóricos. Não basta apenas descrever semelhanças e diferenças, pois são códigos diferentes – palavra e imagem. Os apócrifos têm muito a nos oferecer em relação à imagem. Ao explorar a imagem, Chevitarese deveria ressaltar mais os limites e as interfaces entre o texto canônico e os apócrifos, enfatizando a atualidade desse diálogo e retomando sua proposição inicial – a letra “b” do texto de Crossan e a “sua” releitura. E ainda poderia perguntar pelo sentido que as pessoas comuns dariam à imagem apresentada. A imagem é melhor vista com Abraão de cabeça para baixo. Não seria uma inversão da leitura? Se vista com Abraão na posição normal, ela se torna “ilegível” e, além disso, mostra-se em baixo relevo. O alto relevo só é nítido com Abraão de cabeça para baixo. Assim, o cordeiro a ser imolado torna-se mais relevante. Não seria o baixo relevo uma possibilidade de ressaltar que o cordeiro sacrificado seria trocado por Jesus?

· Para a ciência da religião teria sido igualmente oportuno a reflexão ter apontado questões históricas do judaísmo e cristianismo, como a passagem dos sacrifícios cruentos no culto para os incruentos, bem como aprofundar o significado do martírio judaico e cristão como resistência, esperança, salvação e sofrimento, também em outros escritos apócrifos judaico e cristãos.

· Na página 6, quando menciona Monte Moriá, creio que há um equívoco. Em Gn 22,2 encontramos o nome Moriá designando a terra e não a montanha. O Monte Moriá fica na terra de Moriá; assim como o Sinai, no deserto que leva o mesmo nome. É correta, porém, a afirmativa de que, posteriormente, em Crônicas, esse monte fica associado ao Monte do Templo. Na época de Josefo, já era uma crença comum pensar no Monte do Templo como o local para onde Abraão levou Isaac.

· Sugestões bibliográficas:

FARIA, Jacir de Freitas. Apócrifos aberrantes e complementares. Cristianismos alternativos. Poder e heresias! Introdução crítica e histórica à Bíblia apócrifa do Segundo Testamento. Petrópolis: Vozes. (No prelo).

KRISTEVA, Júlia. Introdução à semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1974.

Stroumsa, Guy G. La fin du sacrifice. Les mutations religieuses de l'antiquité tardive. Collège de France; Paris: Odile Jacob, 2005. 3) STARK, Rodney. O crescimento do cristianismo. Um sociólogo reconsidera a história. São Paulo: Paulinas, 2006.

Smith, Mark S. O Memorial de Deus: História, memória a experiência do divino no Antigo Israel. São Paulo: Paulus, 2006.

VV. AA. Leitura judaica e releitura cristã da Bíblia. RIBLA, 40, Petrópolis: Vozes, 2001.

 

2. Considerações às interpretações de textos


Em relação ao conteúdo da reflexão de Chevitarese, gostaria de frisar alguns pontos e tecer outras considerações.

1) Considerando a estrutura literária de Gn 22, valeria ressaltar o relato de seu contexto sacrificial organizado de forma que transpareça a seguinte ordem seqüencial: a) Deus ordena a realização de um sacrifício; b) aquele que deve sacrificar prepara o material necessário; c) ele parte para o lugar do sacrifício – a montanha; d) prepara o altar do sacrifício; e) há uma ordem impedindo a realização do sacrifício; f) retorno ao estado original, sem a realização do tipo de sacrifício solicitado. Ademais, o personagem Abraão aceita o pedido divino. O leitor tem a certeza de que ele é fiel, apesar do seu grande sofrimento em ter que realizar tal sacrifício.

2) Em Antiguidades Judaicas, concordo com a interpretação da historização de Flávio Josefo, situando a releitura no contexto do martírio como sinal de esperança, mas faltou abordar o significado último do martírio no judaísmo e no cristianismo.

3) Em Antiguidades Bíblicas, faltou acentuar o caráter de resignação de Filon de Alexandria nas suas atualizações de textos bíblicos. Seria interessante começar lendo o seu texto um pouco antes, de modo que se possa perceber a descrição positiva que Filon faz de Isaac e Abraão, apresentando-os como modelos ancestrais judaicos para os judeus de seu tempo, os quais sofriam discriminação étnica em Alexandria. Na descrição do sacrifício de Isaac, vale também ressaltar que ele fez opção tranqüila pelo martírio porque tinha a certeza de estar no caminho de santidade, já demonstrada pela piedade do seu pai, que realizou um sacrifício perfeito. Essa atualização de Filon motivou os judeus a sofrer o martírio em prol do judaísmo.

4) Dentre os textos bíblicos analisados, seria bom considerar aqueles que tratam da filiação divina de Jesus e sua ressurreição: Rm 1,3-4; I Cor 15,3-6; Fil 2,5-9; ITs 4,15-17; Gal 4,4-5. A morte de Jesus, o Filho, nos trouxe a salvação. Ele ressuscitou. Abraão não sacrificou seu filho Isaac porque Deus mesmo não lhe permitiu. Já com a morte de Jesus, Deus eliminou os nossos pecados por meio de sua carne sacrificada (Rm 8,3). Deus não poupou o seu próprio Filho, mas o entregou por todos nós (Rm 8,32). O sacrifício de Isaac está na origem da interpretação paulina da crucifixão de Jesus. Gn 22 serve como fundamento da morte de Jesus na cruz[2]. Na tentativa de demonstrar a antiguidade do cristianismo ao império romano, nada melhor que Gn 22, pois em Jesus se realizou o sacrifício de Isaac e a salvação de todos. Sua morte é redentora e sua ressurreição, histórica.

5) Em Hebreus 11,19, teria sido melhor citar o texto desde o versículo dezessete, que retoma o tema da fidelidade de Abraão para a comunidade dos hebreus, bem como outras passagens dessa carta. A fé de Abraão é apocalíptica. Ele afirma que Deus é capaz de ressuscitar os mortos. O autor da carta aos Hebreus se utiliza de Gn 22 para polemizar com o judaísmo formativo. Jesus mesmo é o sacerdote misericordioso da descendência de Abraão. Jesus destrói o império da morte, o diabo (Hb 2,14-17). E mais do que isso, em Hb 7, 26-27, a morte de Jesus é um sacrifício sacerdotal que ultrapassa o sistema de pureza do judaísmo.

6) Em relação à Epístola a Barnabé, mesmo que esta tenha sido “o último e decisivo passo na historização da exegese de Gn 22”, vale destacar que esse livro é o mais antijudaico dos apócrifos. Nele, o judaísmo não é considerado religião verdadeira e o Primeiro Testamento é de índole cristã. Os cristãos não-judeus são os herdeiros da promessa. E ainda, nesse mesmo contexto de releitura do Gn 22 da Epístola de Barnabé, valeria mencionar a teologia de Marcião, que ensinava que o cristianismo devia romper com o judaísmo, pois este possuía o deus vingativo, o Demiurgo; bem como os ensinamentos de Valentino, de que a fé na morte e ressurreição de Jesus não salva, e os dos ebionitas, que defendiam a morte redentora de Jesus na cruz.

 

3. Releituras de Gn 22 não consideradas


O texto poderia retomar outras releituras de Gn 22. Cito algumas delas.

O Livro dos Jubileus, datado entre 170 e 140 antes da era comum, acrescenta ao relato de Gn 22 um personagem celestial, chamado de Mastema, que pede a Deus para pôr Abraão à prova. Isaac é chamado de filho amado e primogênito. Há um anjo que se coloca entre Abraão e Mastema. O fim do relato anuncia uma festa que será celebrada em sete dias para memorizar esse evento. Nota-se o cunho sacerdotal desse midraxe, que relê o Gn 22 para mostrar que Israel é um povo sacerdotal e santo.

No Targum Neophyti, datado entre os dois primeiros séculos da era comum, vê-se que o sacrifício de Isaac foi a décima tentação de Abraão. Isaac, por ser tão fiel a Deus quanto a Abraão, tem consciência de que ele é a vítima sacrificial e a ela se conforma naturalmente, de modo que seu pai não obtenha a maldição divina em chave escatológica. Depois da intervenção do anjo do Senhor, Abraão ofereceu culto a Deus e invocou o nome do verbo de Javé. Assim, Gn é relido em chave litúrgica. Abraão intercede por Isaac e sua descendência, o que significa dizer, por Israel e pelo judaísmo. Por fim, é dito que no evento do sacrifício de Gn 22 foi manifestada a glória da Shekiná de Israel. Nesse sentido, a escola joanina interpreta o sacrifício de Jesus como manifestação da glória divina.

Esse texto justifica a interpretação de Chevitarese e teria sido oportuna a sua utilização.

 

4. Contribuições à reflexão

 

Para complementar a reflexão de Chevitarese, gostaria de apresentar uma outra imagem e aprofundar a questão do martírio para judeus e cristãos.

Mosaico da Sinagoga de Beth Alpha (séc. VI)

No exercício da historização do Gn 22, é oportuna a utilização da imagem e sua interpretação. Gostaria somente de apresentar uma outra do século VI, encontrada em um mosaico, na sinagoga de Beth Alpha, atualmente localizada em um Kibutz, na Galiléia. A cena representa dois servos de Abraão que vigiam um jumento, e há um carneiro dependurado em uma árvore, pronto para o sacrifício. Abraão, com uma das mãos segura uma espada e, com a outra, coloca Isaac sobre o altar do holocausto. No centro do mosaico, aparece a representação de Deus em forma de sol, do qual sai uma imagem de mão forte para impedir Abraão de realizar o sacrifício. Abaixo está escrito em hebraico: “Não estenda”, retirado de Gn 22, 12 que diz: “Não estenda a sua mão sobre o jovem”. Os nomes de Isaac e Abraão estão escritos sobre suas imagens. No quadro geral do mosaico, além de imagens de elementos da natureza e do zodíaco, está a Torá colocada bem acima da cena do sacrifício de Isaac. Esse detalhe demonstra o valor da Torá e seu cumprimento em Gn 22. Já o uso de imagens é uma questão polêmica, pois os judeus não as permitiam. Nesse caso, pelo fato de ser um ambiente de culto, parece que havia concessão.

Ademais, nesse período, o bizantino, os cristãos são a maioria em Israel e o interesse cristão pelo diálogo com o judaísmo já tinha chegado ao fim. Os judeus sofrem perseguições. A questão é: por que, então, representar o sacrifício de Isaac em um mosaico? Há uma evidente releitura/atualização de Gn 22, tendo em vista o fortalecimento da esperança e da salvação no fim dos tempos. Exemplo disso é a representação do carneiro, que recorda o sacrifício de expiação realizado no templo, que não existe mais. A mão vigorosa de Deus, que aparece acima impondo um pare, sugere o desejo judaico de que Deus intervenha e aja contra os cristãos que haviam dominado a sua terra e seu povo.

Para demonstrar essa esperança de redenção israelita com a poderosa intervenção de Deus, as sinagogas dessa época se utilizaram da arte mosaica não somente com a representação do sacrifício de Isaac, mas também com a representação de Daniel na cova dos leões, em Susiya, e do rei Davi, em Gaza.

 

Rosh Hashná

Para além das imagens, vale lembrar que, no segundo dia do Rosh Hashanáom, que é também o segundo dia do ano novo judaico, lê-se, nas sinagogas, Gn 22, conhecido no judaísmo como Akidat Yitzchak - Amarração de Isaac. Na Torá, Rosh Hashaná é chamado de Iom T´ruá, o dia do toque do Shofar, recebendo, posteriormente, o nome de cabeça (início) do ano. O toque do shofar, naquele dia, segundo uma das interpretações rabínicas, lembra justamente o chifre do carneiro que foi sacrificado em lugar de Isaac. Se Deus salvou Isaac da morte, Ele salvará igualmente o judeu da morte durante o julgamento do início do ano, que termina em Yom Kippur. No fundo, trata-se da submissão incondicional de Israel ao que se considera ser vontade de Deus, custe o que custar. Bem como, o desejo de que Deus considere no pedido de perdão de cada judeu, caso ele não seja digno, o mérito dos seus ancestrais como Abraão e Isaac que demonstrar dedicação e fé.

 

O martírio dos judeus e dos cristãos

A releitura ou atualização de Gn 22, tanto no judaísmo como no cristianismo, como bem acentua Chevitarese, remete-nos ao contexto de martírio. Judeus e cristãos precisavam encontrar uma resposta para os sofrimentos advindos da perseguição romana. Isaac e Abraão são reavivados como modelos de fé judaica e resistência diante do império romano.

Jesus crucificado tornara-se o mártir por excelência. Os cristãos são os novos Isaacs que aceitam o martírio para encontrar a salvação, testemunhando que Jesus morreu e ressuscitou.

O cristianismo apócrifo do século segundo[3] tratou de modo polêmico a questão do martírio em relação ao cristianismo que se tornou hegemônico. Nessa época, a idéia do martírio como caminho de salvação, na demonstração de fé na morte e ressurreição de Jesus, estava largamente difundida entre os cristãos. Negando o mundo e o culto ao imperador, encontrava-se a salvação no além, pensavam os cristãos. Tertuliano condenou os grupos gnósticos que não aceitam a orientação da igreja em favor do martírio. Eles, os gnósticos, afirma Tertuliano, rejeitam o martírio porque dizem que Cristo morreu precisamente para que eles não precisassem morrer. Tertuliano dirá ainda que “é preciso tomar nossa cruz e suportá-la como fez o Mestre. A única chave para abrir o paraíso é o nosso próprio sangue”.[4] Para Irineu, a negação do martírio é uma arma teológica dos falsos cristãos gnósticos, que vivem imunes à perseguição romana. Inácio de Antioquia diz que o martírio é o que diferencia o cristianismo verdadeiro dos hereges[5]. Justino também condena os gnósticos que não são perseguidos e nem condenados à morte como mártires.[6] Os cristãos africanos de Cartago, lugar de atuação de Tertuliano, incentivam o martírio aos moldes dos macabeus e contra os pagãos do império romano. Quem se declarava cristão ou dele se ouvia dizer estava fadado à morte pelo império. Foi o que nos relatou o filósofo e cristão Justino, no ano 115, a respeito de uma mulher romana convertida ao cristianismo e de seu marido, que não se convertera.[7] Ambos foram martirizados por serem considerados cristãos. Justino, nesse sentido, escreve em Apologia 3: “Também eu, portanto, espero ser vítima de conluios e ser crucificado”. E foi o que aconteceu. Em 165, a mando do imperador Marco Aurélio, Justino, Policarpo e tantos outros cristãos anônimos foram martirizados. Policarpo foi queimado vivo na arena. O império também acreditava que os cristãos atraíam castigos dos deuses. Marco Aurélio chegou a pedir a Policarpo que rejeitasse a fé em Cristo e que jurasse pelo imperador. Policarpo morreu declarando-se cristão. Assim, podemos concluir que o martírio era visto pelo cristianismo que se tornou hegemônico como ato de fé que testemunhava a paixão e morte de Jesus e a certeza da ressurreição em outra vida. Cristãos morriam agradecendo a Deus pelo martírio. A obtenção da glória na terra e no além era garantida pela coroa do martírio. As últimas palavras de Narzalo, ao ser martirizado, no ano de 185, foram: “Hoje somos mártires no céu. Graças a Deus!”.[8] Inácio de Antioquia em uma carta escrita aos romanos, antes de ser martirizado, pede que os seus não impeçam a sua morte como mártir. “Rogo-vos que não me deis mostras de bondade inoportuna. Consenti que me torne alimento de animais selvagens, que são os meios de percorrer meu caminho em direção a Deus, e pelos dentes dos animais selvagens estou certo de que poderia provar o puro pão de Cristo”.

Enquanto muitos cristãos morriam martirizados por convicção, outros se perguntavam: Esse é um caminho de salvação ou pura tolice? Como a literatura apócrifa deu a sua resposta a essa questão? Uns eram a favor e outros, contra. Os seus defensores afirmavam que a morte por meio do martírio é um caminho de salvação, mas completavam dizendo que o corpo é matéria e pode até morrer crucificado, como foi o caso dos apóstolos, mas a vida plena está em Deus, fonte do conhecimento. O importante é voltar para Deus. O cristão deve professar a fé e um só Deus, o de Jesus Cristo, que o leva à pátria celestial. Crer é professar a fé em Deus salvador. O cristão deve se libertar de seu próprio corpo material para encontrar a salvação na Plenitude. Essa visão do martírio que salva foi consenso entre algumas correntes apócrifas e o cristianismo que se tornou hegemônico. Ambos os grupos convocavam os cristãos a aceitare o martírio.

Dentre as vozes discordantes em relação ao martírio, destaca-se um tratado gnóstico, intitulado O Testemunho da Verdade, que afirma ser o martírio pela fé uma tremenda ignorância e tolice. Quem opta pelo martírio não sabe quem é Cristo. Assim diz o texto: “Os néscios – que imaginam em seus corações que basta confessar ‘Somos cristãos’ na palavra, mas não com poder, enquanto se entregarem à ignorância e a uma morte humana, sem saber para onde vão nem quem é Cristo, pensando estarem vivos quando, na realidade, estão no erro – caminham depressa para os principados e autoridades. E caem nas garras destes por causa da ignorância que têm dentro de si. Eles são mártires fúteis, pois dão testemunho apenas de si mesmos... Quando se aperfeiçoam morrendo como mártires, eis o que estão pensando: se nos entregarmos à morte por amor ao Nome, seremos salvos. Mas essas questões não resolvidas dessa maneira... Eles não possuem a Palavra que dá vida”.[9] Nota-se a rejeição à paixão e morte física de Jesus, bem como a condenação do martírio como garantia de perdão dos pecados e vida eterna.

Os testemunhos pró e contra o martírio, acima descritos, referem-se aos cristãos, mas, entre os judeus, o martírio não foi visto de modo diverso. A opção pelo martírio judaico foi, por muito tempo, um sinal de resistência e esperança. Os macabeus já haviam ensinado, melhor morrer que negar a Torá e seus ensinamentos, isto é, negar a Deus. A atualização do sacrifício de Isaac teria muito para contribuir com a situação de perseguição romana imposta também aos judeus.

A fé e a prática do martírio como provas da morte e ressurreição de Jesus fortaleceu o cristianismo que se tornou hegemônico. Os grupos gnósticos que combateram essa prática acabaram desaparecendo. O sangue dos mártires foi semente de novos cristãos que se congregaram em uma igreja católica, isto é, universal. Jesus morto e ressuscitado se mostrou, assim, tão humano que somente poderia ser Deus. Os gnósticos ficaram alheios à vida real de cada ser humano, ao proporem um Jesus meramente divino. O que ocorreu, no entanto, quando terminou a época do martírio como testemunho da morte e ressurreição de Jesus, início do século IV, e a igreja tornou-se a emanação do poder na sociedade, a teologia do sofrimento como caminho de salvação continuou na mentalidade dos cristãos, até mesmo nos modernos, que querem sofrer como Jesus sofreu para encontrar a salvação.

Martírio e sacrifício foram fatores preponderantes no crescimento do cristianismo no império romano, pois eram frutos de uma escolha racional do mártir[10]. Portanto, a atualização do sacrifício de Isaac na morte de cruz de Jesus, como vítima pascal, teve um papel importante naquela época. A morte de um cristão mártir era a certeza da sua salvação. Herdeiros desse modo de pensar estão os nossos irmãos-bomba do islamismo, que aceitam morrer mártires para encontrar um paraíso celeste pleno de prazeres e de mulheres e, assim, contribuir para a libertação de seus compatriotas, os palestinos.

A constatação nas releituras Gn 22 de que Isaac aceitou o sacrifício do martírio com naturalidade e a ele se entregou, mesmo que ele não tenha ocorrido, serviam para legitimar o ato do martírio de cristãos e judeus. O martírio somente tem valor se for um ato de entrega livre. Por isso, a insistência na fé e na entrega de Abraão e Isaac. Assim, cristianismo e judaísmo se viam fortalecidos como religião.

 

5. Para continuar pensando

 

Finalizando as considerações sobre as recepções de Isaac e de Jesus no contexto religioso popular judaico e cristão, gostaria de propor umas questões, de modo que possamos continuar no caminho da investigação.

1.Em relação à mudança feita por Chevitarese no texto de Crossan sobre a importância da reflexão popular do texto bíblico para o estudioso, não seria oportuno se perguntar: Os sábios e eruditos daquela época consideravam, de fato, a leitura popular do texto bíblico?

2. Considerando que Gn 22 tornou-se um paradigma de releituras bíblicas, como garantir que a nossa aproximação hermenêutica ao texto, com nosso modo de pensar teológico e ideológico, garanta uma nova palavra de Deus?

3. Em que Gn 22 poderia nos ajudar a compreender a passagem dos sacrifícios cruentos no culto para os sacrifícios incruentos, tanto no cristianismo como no judaísmo? O que dizer dos jovens islâmicos que ainda hoje aceitam morrer como mártires em favor da religião? Ou até mesmo praticar a auto-flagelação?

4. O que, de fato, representava o martírio para judeus e cristãos? Masoquismo? Tolice? Prazer de morrer por outro? Como pode uma pessoa racional fazer sacrifício em proveito de entidades sobrenaturais ocultas? Como atualizar a questão martírio? Ele salva ou é pura tolice?

 

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[1] Frade franciscano e pesquisador dos apócrifos do Segundo Testamento. Autor de vários livros e artigos sobre os apócrifos e Bíblia em geral, Frei Jacir também estuda o judaísmo e sua releitura no cristianismo.

[2] Cf. LÓPEZ, Ediberto, Releituras de Gn 22 no judaísmo e cristianismo primitivo e o sacrifício de Isaac, RIBLA, 40, Petrópolis: Vozes, 2001, p. 66-91.

[3] Para a análise dos cristianismos apócrifos desse século, bem como dos séculos primeiro e do terceiro ao sétimo, veja o no nosso livro Apócrifos aberrantes e complementares. Cristianismos alternativos. Introdução crítica e histórica à Bíblia Apócrifa do Segundo Testamento, Petrópolis: Vozes, 2008 (No prelo).

[4] Cf. Tertuliano, De Anima 55.

[5] Cf. Ehrman, Bart D., Evangelhos perdidos, São Paulo: Record, 2008, p. 210.

[6] Cf. Justino, II Apologia 15.

[7] Cf. Justino, o Mártir, I Apologia 1.

[8] Cf. Acts of the scillitan martyrs, 1-3, In Christian martyrs, 86-87.

[9] Cf. Testemunho da Verdade 31, 22-32,8; 33,25-34,26.

[10] Cf. STARK, Rodney, O crescimento do cristianismo. Um sociólogo reconsidera a história, São Paulo: Paulinas, 2006, p. 185.

 

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As Recepções de Isaac e de Jesus no Contexto Religioso Popular Judaico e Cristão.

 

André Leonardo Chevitarese

DH / UFRJ

NEE / UNICAMP

 

 

[...] pesquisar as escrituras era prerrogativa de estudiosos ilustrados [...].

Para os crentes comuns alguém tinha que historicizar, atualizar e popularizar a exegese em história [...].

[...] a historicização do passado sempre significou a atualização para o presente [...].

(Crossan, 1995: 129, 132)

 

 

I. Gostaria de tornar ainda mais explícita as idéias de Crossan citadas na epígrafe deste trabalho:

(a) é de responsabilidade dos estudiosos (eu diria, em qualquer época histórica, na medida em que dominam a escrita) a pesquisa sobre as escrituras bíblicas;

(b) as pessoas comuns (sejam elas judias e / ou cristãs) dependem sempre da historicização da exegese, de modo que esta última possa lhes fazer sentido; e, por fim,

(c) a historicização do passado é sempre a atualização do tempo presente.

 

Apesar de as suas idéias sugerirem ótimos desdobramentos de análise para este trabalho, eu proporia uma mudança no item b, particularmente quanto ao emprego do verbo depender. Ele me parece não apenas hierarquizar demais a relação erudito / popular, impondo uma decisão de cima para baixo, como também a engessa, de tal forma, que já não é possível conceber qualquer possibilidade de troca entre as partes do binômio, algo do tipo, uma via de mão dupla. Por estes motivos é que eu proponho uma mudança, de modo que a relação erudito / popular seja mais fluida possível. Neste sentido, ao retornar às idéias propostas por Crossan, eu as apresentaria nestes termos:

(a) é de responsabilidade dos estudiosos (eu diria, em qualquer época histórica, na medida em que dominam a escrita) a pesquisa sobre as escrituras bíblicas;

(b) as pessoas comuns (sejam elas judias e / ou cristãs) e os estudiosos, na medida em que estão sempre em contato, produzem uma historicização da exegese que lhes faz sentido; e, por fim

(c) a historicização do passado é sempre a atualização do tempo presente.

 

Com essas alterações processadas, eu diria que estas novas idéias definem o norte deste trabalho, na medida em que elas determinam como serão lidas os livros Quarto Livro de Macabeus[1], Antiguidades Judaicas[2], de Josefo, e As Antiguidades Bíblicas[3], de Pseudo-Fílon.

Parte-se aqui do pressuposto que as três referidas obras (a) foram produzidas por estudiosos das escrituras bíblicas; (b) elas sistematizam como os crentes comuns e os estudiosos do século I EC em diante passaram a historicizar o sacrifício de Isaac; e (c) ao historicizarem o referido sacrifício, o atualizaram a partir do seu tempo presente.

 

II. A fim de demonstrar estes argumentos, lança-se mão do método comparativo. Pelo seu emprego, é possível identificar, nos referidos textos judaicos, quais os elementos da narrativa do sacrifício de Isaac que (a) permaneceram como núcleo central; (b) foram descartados; e (c) foram agregados como novos naquelas três narrativas literárias. Apesar de estes dois últimos aspectos serem centrais no que se quer aqui demonstrar, considera-se que a identificação dos novos elementos agregados ao núcleo central da história do sacrifício de Isaac é chave para se estabelecer o ponto de contato entre as referidas narrativas literárias e as tradições religiosas populares[4] judaicas no século I EC.

 

III. O livro de Gênesis[5] (22:1-19) oferece a narrativa mais antiga sobre o sacrifício de Isaac. É possível organiza-la em oito tópicos centrais:

(a) Abraão tem um único filho, Isaac (Gn 22:2,12,16);

(b) Ele ouve de Deus “Toma teu filho [...] e vai à terra das elevações”. Abraão obedece e leva consigo Isaac, além de dois de seus servos (Gn 22:2-3);

(c) Ao chegar lá, ele diz aos seus dois servos para permanecerem com o jumento ali. Ele e o seu filho iriam até o lugar do alto indicado, adorariam (o Senhor) e voltariam até onde eles estavam (Gn 22:5);

(d) Abraão tomou a lenha para o holocausto e a colocou sobre o seu filho, tendo ele mesmo levado o fogo e o cutelo (Gn 22:6);

(e) Isaac, neste momento, lhe diz “Meu Pai” (Gn 22:7);

(f) Abraão amarra-o e o leva para junto do altar (Gn 22:9);

(g) Um anjo lhe chama e lhe pede para não levantar a mão contra o menino (Gn 22:11-12);

(h) Após oferecer um carneiro em holocausto (Gn 22:13), Abraão volta para junto dos seus dois servos (Gn 22:19). Convém observar: nada é dito sobre o retorno de Isaac.

 

IV. Ao comparar os oito tópicos de Gn com cada um dos três autores judeus do século I EC, é possível verificar a forma como se processa a historicização da exegese, que atualiza o passado sempre em função do tempo presente do autor.

 

4.1. 4Mac pode ser datado da primeira metade do século I EC, entre os anos 20-54 (Metzger, 1977:309). O autor, cujo nome se desconhece, oferece poucas, mas significativas referências ao sacrifício de Isaac, onde algumas delas mostram-se dependentes do texto de Gn (22:1-19). Elas podem ser agrupadas em cinco tópicos básicos:

(a). Eleazar aceita morrer por razão semelhante àquela de Isaac [...] (4Mac 7:14).

(b). Abraão, Isaac e Jacó não morreram para Deus, mas vivem em Deus (4Mac 7:19).

(c). Lembrem-se de onde vocês vieram, e do pai por cuja mão Isaac teria se submetido para ser morto por causa da religião (4Mac 13:12).

(d). Por sua procura também nosso pai Abraão foi zeloso para sacrificar seu filho Isaac, o ancestral de nossa nação; e quando Isaac viu a mão de seu pai empunhando uma espada e descendo sobre ele, ele não se encolheu (4Mac 16:20).

(e). [...] e Isaac que foi oferecido como um sacrifício [...] (4Mac 18:11).

 

Cada um dos cinco tópicos está associado à imagem do mártir judeu. A começar pelo item a, vê-se que Eleazar, que foi martirizado diante de Antíoco IV Epífanes (4Mac 5:4-5), está diretamente ligado à figura de Isaac. A seguir, o item b, onde o martírio, quando associado à defesa da religião, não significa morte no seu sentido absoluto, mas imortalidade (4Mac 9:22; cf. tb. 2Mac 7:36) e / ou esperança da ressurreição para o mártir (2Mac 7:9,11,14). Já os itens c-e estabelecem o modelo de mártir a ser seguido, com Isaac tendo um papel de proeminência aí. Ele é a referência para todo aquele judeu perseguido, preso, torturado e morto por causa da sua religião.

A menção de que dados referentes a Isaac, no 4Mac, trazem indícios de dependência ao livro de Gn, refere-se especialmente à ligação feita pelo autor de Abraão levando o seu filho para ser sacrificado. O emprego do verbo “levar” deve aqui ser feito entre aspas, já que, conforme assinalado no item d, Isaac se mostrou bastante confiante diante do seu próprio sacrifício. Tal confiança se deveu ao fato de ele crer que o Deus de Israel é, por excelência, o Deus da justiça. Portanto, Isaac esperava que Ele o vindicasse, salvando-o da morte e lhe concedendo a salvação eterna.

Constata-se, deste modo, que a narrativa de 4Mac dialoga intensamente com aqueles três argumentos apontados no início do trabalho, implica dizer:

1º. Não há como negar que o autor do livro de 4Mac conhece as escrituras judaicas;

2º. Torna-se bastante clara a sua intenção em historicizar o sacrifício de Isaac. Esta historicização não deve ser atribuída como sendo uma criação sua, mas, preferencialmente, como o resultado de um diálogo entre ele e a sua comunidade. Bem entendido: a leitura que ele propôs já circulava por entre os membros da sua comunidade judaica. De outro modo, ficaria difícil de entender, quiçá, até mesmo de aceitar, enquanto modelo explicativo, que os judeus comuns, inseridos na mesma comunidade do autor de 4Mac, só souberam que Isaac serviria como modelo de mártir, depois que o próprio autor e / ou alguém, que leu a referida obra, lhes contou!; e

3º. Que essa historicização é, na verdade, a própria atualização do seu tempo presente.

Sobre este último aspecto, convém destacar: (a) apesar de não haver qualquer indício no texto de que Isaac não fosse uma criança, ele não foi lido como alguém completamente indefeso e sem consciência do que estava ocorrendo ao seu redor. Muito pelo contrário, Isaac mostrava-se ciente de tudo; (b) E por entender exatamente o que estava acontecendo, ele mostra bastante coragem diante da morte. Não há como negar, de acordo com os próprios dados da narrativa, de que ele age como um verdadeiro mártir que não teme a morte; como uma referência a ser seguida, na medida em que deposita toda a sua esperança em Deus.

 

4.2. AJ pode ser datada da última década do século I EC, entre os anos 93-94 (Meier, 1992:64). Dos três autores analisados, Josefo é aquele que oferece a mais extensa narrativa, recheada de detalhes acerca de Gn (22:1-19). Os seus principais tópicos são:

(a) Após a expulsão de Hagar e Ismael (AJ 1.12:3-4 (1:215-221)), Isaac tornou-se o filho único de Abraão (AJ 1.13:1 (1:222)).

(b) Deus pede a Abraão que o seu amado filho Isaac lhe seja dado em sacrifício no monte Moriá (AJ 1.13:1 (1:223-224)).

(c) Abraão tomou Isaac e mais dois servos e tendo carregado um jumento com os requisitos para o sacrifício partiu para a montanha (AJ 1.13:2 (1:225)). Ao chegar próximo ao monte, ele deixou os seus dois servos e foi sozinho com seu filho para o monte onde o rei Davi posteriormente erigiu o templo (AJ 1.13:2 (1:226)).

(d) Eles levaram tudo o que era necessário para um sacrifício, exceto a vítima (AJ 1.13:2 (1:227)). Isaac, que tinha vinte e cinco anos de idade, enquanto estava construindo o altar, perguntou a Abraão que sacrifício eles iriam oferecer, já que não havia nenhuma vítima ali com eles. Abraão lhe respondeu que Deus lhes a providenciariam (AJ 1.13:2 (1:227)).

(e) Quando o altar ficou pronto e a lenha foi colocada sobre ele, Abraão diz a Isaac que ele é a oferenda a ser sacrificada a Deus (AJ 1.13:3 (1:228-231)).

(f) Isaac, após o sei pai ter lhe dito isso, ficou alegre. Ele lhe disse que era melhor ele nunca ter nascido, caso tivesse que rejeitar aquela decisão de Deus e a de seu pai. E tendo dito essas palavras, ele se precipitou para o altar, para a sua imolação (AJ 1.13:4 (1:232)).

(g) E o sacrifício teria se realizado, caso Deus não tivesse se colocado no caminho, porque ele o chamou Abraão pelo nome, proibindo-lhe de imolar (sfaghv) o menino (AJ 1.13:4 (1:233)).

(h) Deus trouxe da obscuridade um carneiro para que Abraão e Isaac pudessem vê-lo e sacrificá-lo. Após tê-lo oferecido em holocausto, ambos retornam para casa (AJ 1.13:4 (1:236).

 

Algumas observações podem ser estabelecidas, quando se comparam as narrativas de Gn e de AJ.

De imediato, Gn 22.2 fala de uma das montanhas, sem nomear o sítio como sendo Moriá. Por outro lado, dos tópicos desenvolvidos por Josefo, os itens b-c não apenas nomeiam uma dessas montanhas como sendo Moriá, como também diz que foi nela que o rei Davi erigiu o templo de Jerusalém. Verifica-se claramente, conforme chamou atenção Thackeray (1991:110-111,nota a, 1991:113,nota a), do uso da narrativa de 2Cro 3:1 por Josefo, pois é ali que é mencionado que o monte Moriá foi o sítio escolhido por Salomão, ao invés de Davi, conforme o referido historiador menciona, para a edificação do templo de Jerusalém.

A seguir, o item d oferece um dado radicalmente novo, qual seja: Josefo diz que Isaac tinha 25 anos de idade no momento em que seu pai o levou para ser sacrificado a Deus. Esta informação não é mencionada em qualquer livro bíblico, muito menos na narrativa de Gn, onde Isaac é apresentado como uma criança (Thackeray, 1991:113,nota b).

Depois, os itens e-f falam da alegria de Isaac, ao ser informado por seu pai que ele seria a própria oferenda a Deus. Ao ouvir tais palavras, ele prontamente se lançou para o altar, feliz por ser imolado ao Deus que ele tanto amava (AJ 1.13:1 (1:222)). Uma vez mais, essas informações não estão presentes na narrativa de Gn. Ao contrário, lemos que Isaac é amarrado e levado para junto do altar. Ele aparece completamente como um agente passivo em toda a ação (Gn 22:9).

Por fim, os itens g-h falam da intervenção direta de Deus impedindo que o sacrifício de Isaac seja consumado. Não há em Josefo, conforme aparece em Gn (22:11-12), a intervenção de um anjo. Agora, o que se vê é Deus agindo. É ele, inclusive, quem faz surgir um carneiro para ser sacrificado no lugar de Isaac. Após o sacrifício, Josefo não deixa margem para dúvida: pai e filho retornam para casa.

Verifica-se uma vez mais, tal como ocorreu com o 4Mac, que a narrativa do sacrifício de Isaac na AJ é passível de ser lida a partir daqueles três argumentos apresentados por Crossan, quais sejam:

1º. Inegavelmente Josefo é um estudioso das escrituras judaicas;

2º. É clara a sua intenção em historicizar o sacrifício de Isaac. Conforme já foi salientado, porém, esta historicização não deve ser atribuída como sendo uma criação de Josefo, mas como o resultado de um conhecimento compartilhado por ele e a comunidade judaica na qual ele estava inserido; e

3º. A historicização que ele propõe é visivelmente a própria atualização do seu tempo presente.

Sobre este último aspecto, convém destacar: (a) o local onde ocorreu o sacrifício de Isaac deixa de ser visto como um lugar desconhecido, e passa a ser identificado por Josefo como sendo Moriá, o monte onde foi erigido o templo de Jerusalém, destruído duas décadas atrás por causa da guerra judaico-romana. Portanto, não se trata de um templo qualquer, mas aquele por excelência onde Deus se fez presente e prometeu que Isaac alcançaria uma idade bastante avançada, repleta de felicidade. Que a sua descendência semearia uma multidão de nações, com muita riqueza, nações cujos fundadores teriam uma lembrança perpétua de que eles conquistaram Canaã pelos seus exércitos e que seriam invejados por todos os homens; (b) Isaac não era uma criança completamente indefesa e sem consciência do que estava ocorrendo. Ao contrário, ele era um homem maduro que respeitava muito o seu pai e amava profundamente a Deus; (c) E por entender exatamente o que está acontecendo ao seu redor, ele se mostra feliz por saber que ele próprio é a vítima sacrificial a ser oferecida a Deus. Ele age como um verdadeiro mártir que não teme a morte, por que deposita toda a sua esperança em Deus.

 

4.3. A obra AB situa-se no período posterior à destruição de Jerusalém por Tito, sendo, portanto, datada entre a década de setenta e o final do século I EC (James, 1917:29-33)[6]. Ela acaba se tornando contemporânea àquela de Josefo. AB traz breves referências ao sacrifício de Isaac, o que demonstra que Pseudo-Fílon conhecia o texto de Gn. Estes dados podem ser reunidos nos seguintes tópicos:

(a) Isaac é filho de Abraão com Sara (AB 8:3).

(b) Deus requereu de Abraão o seu filho como uma oferenda. Abraão, atendendo-Lhe, trouxe Isaac e o colocou sobre o altar. Deus, porém, o restaurou ao seu pai (AB 28:5).

(c) Mesmo já estando numa idade bastante avançada, Deus deu a Abraão um filho. Ele, posteriormente, pediu a Abraão que matasse o fruto do seu ventre e o Lhe oferece. Abraão fez imediatamente o que Deus havia lhe ordenado. Antes, porém, conversou com Isaac e este lhe disse: “Não tenho eu vindo ao mundo para ser oferecido como um sacrifício para aquele que me fez?” Abraão, tendo-o oferecido sobre o altar, Isaac estava com os pés amarrados, no momento em que iria matá-lo, ouviu a voz de Deus vinda do alto: “Não mate seu filho, nem destrua o fruto do teu corpo” (AB 32:2-4).

(d) Abraão levou seu filho para ser sacrificado. Isaac, ciente do que estava acontecendo, mostrou-se alegre (AB 40:2).

 

Com relação aos quatro tópicos, algumas observações podem ser apontadas.

De imediato, os itens a-b acompanham de perto dois dados oferecidos por Gn: Isaac é filho de Abraão e Sara (Gn 22:2,12,16); e Deus pede a Abraão que sacrifique o seu filho (Gn 22:2-3). Os dois tópicos posteriores, isto é, os itens c-d, lembram a satisfação de Isaac ao saber que ele é o objeto a ser oferecido a Deus. De fato, estes dois últimos itens não aparecem na narrativa de Gn. O item c fala da intervenção direta de Deus impedindo que Abraão consumasse o sacrifício do seu único filho, tal como ocorre na narrativa de Josefo. Como em 4Mac e em AJ, também no texto de Pseudo-Fílon, não há, tal como aparece em Gn, a intervenção de um anjo.

Constata-se, deste modo, o quanto a narrativa de AB dialoga com aqueles três argumentos enfatizados logo na abertura do trabalho:

1º. Não há como negar que o autor conhece as escrituras judaicas;

2º. Uma vez mais, esta historicização não deve ser atribuída como sendo uma criação de Pseudo-Fílon, mas como o resultado de um conhecimento que já se encontrava disseminado no seio da sua comunidade; e

3º. Que essa historicização é, na verdade, a própria atualização do seu tempo presente.

Sobre este último aspecto, convém destacar: (a) apesar de a narrativa conter a informação de que os pés de Isaac estavam amarrados (AB 32:4), ele estava ciente de tudo; (b) A sua alegria diante da morte é, mas do que demonstração de coragem, a sua total confiança em Deus. Não há como negar, ele age como um verdadeiro mártir que não teme a morte.

Este último aspecto pode ser demonstrado com dois bons exemplos oferecidos pelo próprio Pseudo-Fílon: 1º. Isaac diz que veio ao mundo para ser oferecido para aquele que o fez (AB 32:3); e 2º. Ele se mostra feliz com o fato de ser sacrificado pelo seu pai a mando de Deus (AB 40:2).

 

Constata-se, assim, que os trabalhos dos três autores apresentam dois eixos temáticos comuns: o martírio e a figura de Isaac como modelos, por excelência, de mártir para os judeus do século I EC.

Deve-se considera que estes dois eixos temáticos se fazem presentes em autores:

(a) que viveram em regiões diferentes do Mediterrâneo;

(b) que nunca se viram;

(c) que não mostram qualquer sinal de conhecimento à obra dos demais

 

Logo, parece correto o argumento de que a historicização exegética é mais o resultado do diálogo do que de dependência entre estudiosos e crentes comuns.

Ao mesmo tempo, estes dois eixos temáticos comuns, presentes em três diferentes autores, só podem ser explicados por acontecimentos históricos que tenham tido um impacto significativo junto às mais diferentes comunidades judaicas. Quando se pensa no século I EC, não me parece difícil dizer quais seriam eles. Eu os identificaria como sendo:

(1) A ação de Calígula (seguida imediatamente de resistência judaica) de querer instalar a sua estátua no interior do templo de Jerusalém;

(2) A guerra judaico-romana, culminando com a destruição de Jerusalém.

 

Ambos os acontecimentos estão associados ao desenvolvimento da idéia de martírio e da figura de Isaac como modelo do perfeito mártir judeu.

 

V. Para Brown (1994,II:1440, 1437-1439), estes pontos da narrativa e da teologia de Isaac oferecem muitas semelhanças, tendo possivelmente influenciado a história de Jesus.

De fato, o autor tem razão neste seu argumento. Admitindo que no século I EC as fronteiras entre judeus e cristãos eram fluidas, e que nem sempre é fácil estabelecer com precisão quem é quem neste jogo, tanto comunidades judaicas, quanto cristãs estavam sob a influência do mesmo processo de historicização exegética, bem como buscavam constantemente atualizar o passado em função do tempo presente.

Ao considerar a leitura proposta por dois autores cristãos[7] do século I EC, verifica-se que também eles estavam compartilhando de argumentos muito parecidos àqueles propostos por 4Mac, AJ e AB.

Clemente, na sua Primeira Carta aos Coríntios (31:3), faz uma leitura mais ampliada de Gn 22. Ele reporta que:

“Isaac, com confiança, sabedor do futuro, foi alegremente levado como um holocausto”.

 

Já na Carta aos Hebreus (11:19), o seu autor faz Abraão dizer:

“Deus é capaz também de ressuscitar os mortos. Por isso, numa espécie de parábola, reencontrou o seu filho”.

 

Estas duas passagens demonstram que nas comunidades cristãs do século I, o processo de historicização exegética, com maior ênfase na figura de Isaac como modelo de mártir, também se fazia presente. No entanto, conforme o referido passo de Hebreus sugere, ele parece marcar um momento de transição na forma de se fazer a historicização da exegese cristã, com o claro objetivo de se estabelecer um paralelo mais direto entre o sacrifício de Isaac, oferecido no altar, e a auto-doação de Jesus, morto na cruz. Por motivos óbvios, é claro, esta leitura não irá aparecer em qualquer autor judeu. Torna-se evidente, assim, que aqueles três pressupostos enunciados na abertura deste texto, também se aplicam aqui, com interessantes distinções na forma de se processar a historicização da exegese do sacrifício de Isaac:

1º. Não há como negar que os autores cristãos conhecem as escrituras judaicas, que eles reconhecem também como suas, em especial a narrativa do sacrifício de Isaac em Gn;

2º. É possível identificar, entre os autores cristãos, na virada do século I para o século II, três estágios diferentes na forma de se historicizar o sacrifício de Isaac. Em 1Cle, Isaac é ainda lido como modelo de mártir; em Hb, o sacrifício de Isaac vai associado ao tema da ressurreição, com Deus vindicando o seu filho; já no século II,