16º DOMINGO DO TEMPO COMUM

16º DOMINGO DO TEMPO COMUM (17 de julho)

Deus é rei e o seu reino é como o joio, o pé de mostarda e a mulher?

 

Frei Jacir de Freitas Faria, OFM

I. INTRODUÇÃO GERAL

A homilia de hoje tem seu centro no Reino de Deus, sua definição e no modo como ele é realizado no meio de nós. Várias são as possibilidades de interpretação: o reino é como o trigo, a mostarda e o fermento ou o joio, o pé de mostarda e a mulher? A pergunta parece ser ousada, mas veremos como os vários modos de interpretação se complementam.

 

II. COMENTÁRIOS DOS TEXTOS BÍBLICOS

  1. 1.        I leitura (Sab 12,13.16-19): Ser sábio é aprender de Deus: rei, humano e misericordioso

As palavras de sabedoria da primeira leitura de hoje, tiradas do livro da Sabedoria, são permeadas de esperança para o povo judeu que vivia em meio à cultura e dominação gregas, sobretudo na cidade de Alexandria, onde esse livro foi composto entre os anos 50 e 60 antes da Era Comum (a.E.C.). O judaísmo era desafiado pelos valores gregos do ser. Os judeus se perguntavam: como se adaptar à nova realidade sem perder a fé em Deus dos pais e da libertação do Egito? A resposta era simples: testemunhar que o Deus de Israel era diferente. E foi isso que o piedoso judeu e autor do livro da Sabedoria quis mostrar, a despeito de outros judeus, seus antecessores, que apresentavam Deus forte, violento para com os inimigos. Deus, no livro da Sabedoria, é cuidador de todos (v.13) que julga com justiça (v.13), perdoa e governa com indulgência (v. 18).  Por ser assim, Deus não deixa de ser menos poderoso que os deuses dos pagãos. E mais do que isso, o ser humano é convocado a ser como Deus, misericordioso. Deus é humano no seu proceder. E ao ser humano, aprendendo de Deus, resta também governar e agir com justiça, misericórdia e solidariedade. Eis o nosso grande desafio: aprender da pedagogia de Deus.

 

  1. Evangelho (Mt 13,24-43): o Reino de Deus é como...

Dando continuidade ao discurso de Jesus em forma de parábolas com a devida explicação alegórica, encontramo-nos diante de três modos de Jesus definir o sentido do Reino de Deus, os quais nos questionam: O reino é como o trigo ou o joio? Como o fermento ou como a mulher? Como a semente de mostarda ou pé de mostarda? Vejamos uma por uma. Ah! Outro detalhe importante: se a primeira leitura falou do proceder de Deus-Rei, agora faz sentido falar do reino.

  1. a.        O reino é apocalíptico e como o trigo. A comparação parece simples. O trigo é semeado. Vem alguém e semeia o joio. O que fazer? Arrancá-lo para não sufocar o trigo? Não. Bastar esperar o crescimento de ambos até que o tempo da colheita chegue, quando o joio será queimado e o trigo recolhido em celeiros (v.24-30). Essa é a única parábola que foi explicada de forma apocalíptica por Jesus. Trata-se do fim dos tempos: aqueles que praticam a injustiça serão queimados na fornalha ardente e os justos brilharão como o sol no reino de seu Pai. A menção de diabo – o inimigo que semeou o joio – e do Filho do Homem – aquele que semeia a boa semente no campo (mundo) evoca a urgência apocalíptica da realização dos ensinamentos de Jesus pela comunidade de Mateus. Somos herdeiros dessa que se tornou a tradicional interpretação da parábola: o joio foi identificado como elemento ruim que impede o reino de crescer, e, por isso, no fim dos tempos, será arrancado e queimado. Em outras palavras: o mal deve crescer junto com o bem, o reino, representado pelo trigo.
  2. O reino de Deus tem a ver com questões agrárias e é como o joio. A comunidade de Mateus releu a parábola no contexto escatológico. E o fez muito bem! No entanto, considerando o contexto agrário e de confronto com o império romano, no qual a comunidade de Tomé constrói essa parábola, podemos definir o Reino de Deus de três modos. Tomé 57 descreve: “Disse Jesus: O Reino do Pai é semelhante a um homem que tem uma boa semente. De noite veio seu inimigo e semeou joio entre a boa semente. O homem não lhes permitiu que arrancassem o joio. Pode acontecer que, indo arrancar o joio, arranqueis com ele a boa semente. No dia da colheita o joio aparecerá. Então será arrancado e queimado”.  A erva daninha, chamada de joio, é uma graminha que cresce anualmente e é muito comum nos países do mediterrâneo oriental. Ela é uma erva venenosa, seus grãos possuem toxina. O gado que a come morre. O joio não cresce em terrenos a mais de 550 metros de altitude. Nos anos chuvosos, ele cresce mais que o trigo. A experiência campesina aprendeu, desde cedo, que colher o joio junto com o trigo é desaconselhável, pois esse irá contaminar o trigo. Daí o conselho que aparece no final de ambos os textos. Mas então, como definir de três modos o Reino de Deus nessa parábola? Ele pode ser comparado ao joio, ao fazendeiro próspero ou ao sem terra. O Reino é como o joio, essa erva daninha que cresce em qualquer lugar, sem pedir licença. O Reino é assim, chega e se esparrama, independentemente da vontade das pessoas, seja ele um rico fazendeiro, seja ele um pobre sem terra. Ninguém pode impedi-lo. Assim aconteceu, mais tarde, com o império romano, ele teve que aceitar o cristianismo como religião. O reino é como um fazendeiro próspero que possui uma rica plantação de trigo e não pode impedir que cresça o joio (Reino de Deus) jogado na sua plantação pelo inimigo. Por fim, o reino é como o sem terra que não pode se livrar do grande fazendeiro que tirou as suas terras. Mas quando o joio cresce na plantação do fazendeiro, ele só pode rir. O Reino está dentro de cada um de nós. Mesmo sendo arrancado e queimado, ele cresce em outro lugar (Cf. FARIA, Jacir de Freitas, As origens apócrifas do cristianismo. Comentário aos evangelhos de Maria Madalena e Tomé. 2 ed. São Paulo: Paulinas, 2003, p. 117-119).
  3. O reino é como a semente de mostarda, uma árvore ou pé de mostarda. A outra parábola do evangelho de hoje encontra-se também em Mc 4,30-32; Lc 13,18-19 e Tomé 20. Vale a pena ler as narrativas, comparando-as para perceber as mudanças recebidas ao longo da transmissão: de terra para campo e horta, de ramo para árvores, etc. Considere que a linha histórica é: Tomé (ano 50 Era Comum), Marcos, Mateus e Lucas (entre os anos 60, 70, 80, respectivamente). Estamos diante de uma parábola que, ao ser transmitida, recebeu algumas modificações. Analisemos essa passagem a partir das seguintes questões: Qual seria a intenção de Jesus ao contar essa parábola? Onde está o centro da parábola? Interpretações tradicionais insistem em mostrar o reino como uma semente pequena que cresce e fica grande. Vejamos três outros modos possíveis de ler a parábola da semente de mostarda a partir de seu centro. Centro da parábola: semente. Compreendido desse modo, o enfoque desse texto está na passagem do pequeno para o grande. A pequena semente de mostarda é o novo Israel, isto é, os seguidores de Jesus, os quais se tornarão “grandes árvores”. Tomé, Marcos e Mateus, com exceção de Lucas, falam de algo menor que se torna grande. Não acreditamos ser essa a melhor interpretação. Não obstante há de se considerar que cada seguidor do Reino é chamado a lavrar constantemente o seu interior para deixar a semente do reino crescer e produzir abundantes frutos. O centro da parábola é a árvore apocalíptica. Nesse sentido, o pequeno Israel tornar-se-ia uma grande árvore apocalíptica. Textos do Primeiro Testamento falam do cedro do Líbano como árvore apocalíptica (Sl 104,12; Ez,31,3.6; Dn 4,10-12). E é nessa grande árvore que os pássaros fazem os seus ninhos. Acreditamos que se Jesus, de fato, quisesse referir-se a uma árvore apocalíptica teria mencionado o cedro e não a mostrada. Não, esse não pode ser o centro da parábola. Centro da parábola: pé de mostarda. A mostarda é uma planta medicinal e culinária que chega a medir no máximo 1 m e ½ de altura. Ela se desenvolve melhor ao ser transplantada. Depois de plantada, torna-se uma erva daninha. Temos dois tipos de mostarda, a selvagem e a culinária. Por ser uma planta impura, o código deuteronômico (Dt 22,9) proíbe a sua plantação. O centro da parábola está, portanto, no pé de mostarda, seja ele doméstico ou selvagem. Assim é o Reino de Deus, ela chega e se esparrama. Não pode ser controlado, torna-se abundante como a nossa tiririca. Atrai pássaros, inimigos de qualquer agricultor. O Reino, depois de semeado, perde o controle, toma conta do terreno todo. Assim como o Reino, a mostarda é motivo de escândalo para muitos. O Reino é indesejável e violador das regras de santidade. Essas interpretações nos ajudam a compreender o valor do Reino (CROSSAN, John Domini Crossan, O Jesus histórico; vida de um camponês judeu do mediterrâneo, Rio de Janeiro: Imago, 1994, p. 313-318).

d. O reino é semelhante à mulher que usa o fermento. Encontramos essa terceira parábola do evangelho de hoje também em Lc 13, 20-21 e Tomé 96, sendo que o último assim a registrou: “O reino de Deus é semelhante a uma mulher que tomou um pouco de fermento e misturou-o à massa e fez grandes pães ”. O evangelho de Tomé tirou o exagero de três medidas de farinha de Mateus. O simples fato de comparar o reino à mulher é significativo. A interpretação tradicional dessa passagem considerou o fermento como ponto crucial na sua compreensão. Ousamos perguntar se, de fato, nisso estaria o centro desse texto? Comecemos por compreender as simbologias utilizadas. Mulher: representa a impureza religiosa e a fertilidade. Suas regras deviam ser controladas pelos sacerdotes. Dessa forma, o sagrado estaria também sob controle. Por outro lado, mulher e a Torá (lei, caminho, conduta) eram os bens preciosos dos judeus. Sem elas, a vida não se multiplicaria. Fermento: símbolo também da impureza e da corrupção moral. O fermento era feito a partir da putrefação da batata, escondida por vários dias em um lugar escuro. O fermento cheirava mal e era detestado por judeus piedosos e escrupulosos. O medo de tocar em coisas impuras e tornar-se uma delas levava os judeus a estabelecer regras de contato com coisas e pessoas impuras. O código da Santidade (Lv 17-26) é um exemplo claro desse modo de pensar judaico. Sede santos como eu sou Santo (Lv 19,2) passou a ser símbolo de pureza moral. Três medidas: o fato de o fermento ser colocado em três medidas de farinha pode não significar nada em absoluto, pois uma mulher não necessitaria fazer 40 quilos de pão. Essa quantidade demonstra a abundância do reino e o três relembra o Shemá Israel (Escuta, ó Israel), profissão de fé israelita baseada no amor vivido com o coração, o ser e as posses (Dt 6, 4-9). Em vários textos bíblicos do Segundo Testamento encontramos alusão ao Shemá (FARIA, Jacir de Freitas, “A releitura do Shemá Israel nos evangelhos e Atos dos apóstolos”, RIBLA, n.40, 2001). Grandes pães: só a comunidade de Tomé se preocupou em mostrar que a ação da mulher resulta em grandes pães. É o Reino de Deus que provoca grandes mudanças. Toda a ação em prol do Reino é como uma massa que, trabalhada com carinho e dedicação, produz grandes pães. Considerando a simbologia e as diferenças nos textos, suspeitamos que o centro da parábola de Tomé não está no fermento, mas no processo de sua fabricação. Ele é feito pela mulher, no escuro, é impuro e cheira mal. Assim também era considerada a mulher. Aceitar o Reino é ir contra o que está ocorrendo de errado na sociedade, é não aceitar o erro tido como coisa normal. O Reino ataca a estrutura má da sociedade. E por mais insignificante que seja, ele contagia, produz “grandes pães” (Cf. FARIA, Jacir de Freitas, As origens apócrifas do cristianismo. Comentário aos evangelhos de Maria Madalena e Tomé. 2 ed. São Paulo: Paulinas, 2003, p.113-116).

Como vimos acima, a definição do reino é ampla e muito nos tem a ensinar. Todas elas têm o seu mérito.

    3. II leitura (Rm 8,26-27): Deus Pai e Deus Espírito estão em nós, na oração pelo reino. A reflexão feita por Paulo, nessa carta dirigida aos cristãos de Roma, nos aponta a oração como caminho de construção do reino de Deus. Se não sabemos rezar é o próprio Espírito que intercede, que reza por nós. Ele suplica a Deus em favor dos que lutam por justiça e paz, assim como vimos nas parábolas do evangelho de hoje. A oração é fonte de vida para o cristão. Jesus foi um homem de oração. Deus Pai e Deus Espírito se entendem e se encontram em nós, quando rezamos e lutamos na construção do Reino de Deus.    

III.  PISTAS PARA REFLEXÃO

  1. Diante das várias possibilidades de interpretação das três parábolas do evangelho, esclarecer o valor de uma delas.
  2. Fazer a comunidade perceber que a luta pela implantação do Reino de Deus exige de cada um de nós um esforço constante. Vivemos em meio ao joio, plantando o trigo; fermentando pão rodeado de injustiças sociais; sonhando com uma ação apocalíptica de Deus.
  3. Levar a comunidade a se perguntar pelo modo como ela exerce o seu poder na sociedade e na comunidade. Ela exerce a misericórdia? Age com justiça? Enfim, segue a pedagogia divina? A faina do cristão consiste em plantar a semente do reino, ser um incômodo constante diante dos reinos de morte, permanecer na oração, tendo a certeza de que o Espírito intercede por nós com gemidos inefáveis.