22º DOMINGO DO TEMPO COMUM

22º DOMINGO DO TEMPO COMUM

A sedução da cruz e do sofrimento: releitura não muito feliz do seguimento de Jesus

 

Frei Jacir de Freitas Faria, OFM

I. INTRODUÇÃO GERAL

Na modernidade, o discurso do sofrimento não atrai ninguém. Tomar a cruz e seguir Jesus é tornar-se um inconformado com as injustiças sociais. Vejamos como as leituras de hoje, no dia da vocação do leigo, podem nos iluminar em uma nova trajetória de fé.      

 

II. COMENTÁRIOS DOS TEXTOS BÍBLICOS

  1. 1.    I leitura (Jr 20, 7-9): O sofrimento advindo da sedução sagrada. “Tu me seduziste Senhor e eu me deixei seduzir.” Essas palavras de rara beleza poética fazem parte do colossal testemunho de fé, a confissão do profeta sofredor, Jeremias. Homem de profunda piedade, ele era sensível ao sofrimento e à crise. Ele optou por não se casar para dedicar-se ao profetismo, entre os anos 626 e 587 a.E.C. Jeremias atuou na cidade de Jerusalém. Segundo os apócrifos Vida dos Profetas 2,1-6, ele era de Anatot e morreu em Táfnis, no Egito (Jr 43, 7s), apedrejado por seu povo (Cf. FARIA, Jacir de Freitas, Profetas e profetisas na Bíblia, São Paulo: Paulinas, 2006, p. 63). Jeremias passou grande parte de sua ação profética denunciando os tribunais injustos, sacerdotes que usam a religião como proveito próprio, escravidão, etc. Como diz a leitura de hoje, suas palavras eram somente “violência e opressão” (v.8). Jeremias também tinha clareza de que o sofrimento que os seus compatriotas passavam no exílio na Babilônia era algo justo. Deus os castigava por causa de seus inúmeros pecados. Imagine quanta incompreensão vivera Jeremias. A leitura de hoje nos mostra a sua grande decepção. Ele acusa Deus de seduzi-lo no serviço profético. E diz com todas as letras: “estou cansado de suportar, não posso mais” (v.9). Jeremias sabe que Deus mudara a sua vida. Quis casar e não o fez por causa da missão. Ele reclama e protesta contra Deus, como se esse fosse responsável pela sua desgraça, pois ninguém queria ouvi-lo e até zombavam dele. No mais profundo sofrimento, Jeremias diz: “Maldito o dia em que eu nasci” (Jr 20,14); “Ai de mim, de minha mãe, porque tu me geraste” (Jr 15,10). O sofrimento de Jeremias interioriza as suas relações com Deus, que se torna seu íntimo. A sedução divina tomou conta de Jeremias. O seu sofrimento foi salvador, mesmo que ele o tenha proposto para o seu povo e o vivido na pele. Não que o tenha querido. Ele veio como consequência de sua ação profética.  
    1. 2.      Evangelho (Mt 16,21-27): tomar a cruz e seguir...  

Após ter chamado Pedro de satanás e pedra de tropeço em sua vida, Jesus convoca seus discípulos a tomar, cada um, a sua cruz, segui-lo, negar a si mesmo e perder a vida por causa dele. Ao longo de séculos, desde os seus primórdios, muitas interpretações dessa passagem bíblica deram rumo à vida de muitos cristãos. Martírio, sofrimento buscado por vontade própria, flagelação do corpo e tantos outros exemplos poderão ilustrar o corolário de ações de cristãos para encontrar a salvação. 

A cruz era um dos instrumentos usados pelos romanos para matar escravos e condenados por rebeldia pelo império, os quais, nus, agonizavam na cruz. Morrer crucificado era o “suplício mais cruel e terrível”, segundo o historiador da antiguidade, Flávio Josefo. E o que é pior, antes de ser crucificado, o condenado podia ser torturado, e até mesmo crucificado de cabeça para baixo ou empalado no poste da cruz, de forma obscena. Os judeus sabiam muito bem o que era a crucifixão, pois muitos deles morreram assim. O judeu seguidor de Jesus, com certeza, foi tomado de espanto, com essa proposta de seu mestre: tomar a sua cruz, de livre e espontânea vontade, e segui-lo, sabendo que iria morrer de forma tal e cruel. A lembrança desse ensinamento motivou muitos cristãos a aceitarem o martírio como caminho de testemunho da ressurreição de Jesus e consequente salvação no reino escatológico. Com o fim do martírio, pois o império romano acabou aderindo ao cristianismo como religião de seu estado, viu-se fortalecida a teologia do sofrimento pessoal que acabou em resignação, sobre o qual mencionamos acima. Essa visão ainda perdura em nossos dias.

Jesus, ao repassar tal ensinamento, estaria aludindo à consequência lógica da adesão ao reino de justiça que ele pregava. Quem se colocava contra o império acabaria na cruz. Não havia outro caminho que não fosse o de perder a própria vida. Ele não propôs sofrimento pelo sofrimento. Isso é masoquismo! Masoquismo e resignação, sofrer calado, não têm espaços no reino.           

 

  1. 3.      II leitura (Rm 12,1-2): Tomar a cruz é tornar-se presença visível de Jesus e não se conformar com o mundo.

Nessa pequena leitura de hoje, Paulo segue o pensamento das leituras anteriores. O cristão é convidado por ele a oferecer o seu corpo como hóstia viva, santa e agradável a Deus, como culto espiritual. Para além dos sacrifícios ritualistas judaicos, a comunidade cristã torna-se uma presença visível de Jesus ressuscitado. Ademais, o cristão não deve se conformar com esse mundo, mas transformá-lo. Tomar a cruz e seguir Jesus, como atestou o evangelho de hoje, tem aqui a conotação de não se deixar iludir pelo poder, pompa, dinheiro e seus esquemas injustos, mas solidarizar-se com os pobres e lutar contra a exclusão. Nada de sofrimento pelo sofrimento.

 

 

III.  PISTAS PARA REFLEXÃO

  1. Celebrando, neste domingo de agosto, a vocação do leigo, do catequista, na comunidade, reforçar o papel do leigo no serviço à comunidade de fé a partir do seu testemunho na transmissão da fé e na participação na vida da comunidade.
  2. Refletir sofre a mentalidade que ainda reina entre os cristãos, a de que tomar a cruz e seguir Jesus é sinônimo de sofrimento e resignação.
  3. Demonstrar que tomar a cruz de Jesus é tornar-se um profeta que não se acomoda diante das injustiças.