TRINDADE: A UNIÃO NO AMOR, NA DIVERSIDADE PLURAL E NA IGREJA DE BATIZADOS (MT 28,16-20)

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TRINDADE: A UNIÃO NO AMOR, NA DIVERSIDADE PLURAL E NA IGREJA DE BATIZADOS (MT 28,16-20)

 

Frei Jacir de Freitas Faria, OFM[1]

A partir do evangelho de Mt 28,16-20, vamos compreender o sentido da Trindade a partir de sua relação com o batismo. Primeiro, uma pergunta: o que é mesmo Trindade? Você, com certeza, dirá que já sabe o que é Trindade. Será? Sim e não. Qual cristão católico que não aprendeu, desde pequeno, a fazer o sinal da cruz sobre a fronte invocando o Pai, o Filho e o Espírito Santo. É bem verdade que o sinal da cruz, nascido nos primeiros séculos do cristianismo, tinha como objetivo visualizar a fé na morte e ressurreição de Jesus. Só mais tarde é que ele foi associado à Trindade. Os evangélicos não fazem o sinal da cruz com a justificativa de que ele não tem fundamentação bíblica.

Para responder às perguntas acima, vamos pontuar a história da compreensão da fé trinitária, sua simbologia, sua relação com o texto bíblico, com a tradição e sua importância para os nossos dias.

O substantivo Trindade nos recorda o número três. Ele vem do latim (trinitas) e quer dizer tríade ou três. A tríplice menção do Pai, do Filho e do Espírito Santo e sua relação com o batismo, conforme Mt 28,16-20, fez da Trindade a marca de todo cristão batizado. Essa citação reflete a prática das comunidades do primeiro século do cristianismo. No entanto, quem usou pela primeira vez o termo Trindade foi Tertuliano (160-220 E.C.)

Agora, vejamos o simbolismo do número três. Ele representa no judaísmo a união e a consistência. O três tem relação com o Sagrado. O fazer três vezes uma coisa significa que ela é durável e firme em toda a vida. Por isso, o judeu teria que ir três vezes ao Templo de Jerusalém durante o ano, nas festas das Tendas, da Páscoa e de Pentecostes. Ah! Outro detalhe, a Bíblia dos judeus, o Primeiro Testamento, está dividido em três partes (Torá, Profetas e Escritos).

Na Bíblia, o três aparece em várias formas: a) a profissão de fé judaica, o Shemá Israel, está baseada no amor a Deus em três condições, práticas de amor: o amar com o coração, com o ser e com as posses (Dt 6,4-9); três vezes Pedro nega a Jesus (Mt 26,69-75); três anjos aparecem a Abraão no carvalho de Mambré (Gn 18,1-33); Jesus ressuscitou ao terceiro dia (Mt 28,1). Poderíamos continuar citando inúmeros outros modos de usar o três na Bíblia, mas já basta para dizer como esse modo de pensar judaico propiciou a fé cristã na Trindade.

Ainda a propósito do Shemá Israel, vale ressaltar que a essência de Deus é o amor.  Falar da Trindade é falar de amor. Falar do amor é falar da família que é constituída por um pai, uma mãe e um filho(a). São três pessoas unidas pelo amor. Todos são diferentes, mas estão unidos na mesma raiz. O pai não é a mãe, a mãe não é o filho. Os três têm a mesma única essência, a mesma natureza, mas são pessoas distintas. A partir dessa relação, podemos compreender a Trindade.  Não são três deuses, mas um só Deus em três pessoas. 

Difícil para entender? Pode ser. Saiba que, para a Igreja, também não foi fácil chegar ao dogma, a expressão de fé, na Trindade. Foram séculos de discussão. A declaração trinitária ocorreu no Concílio de Niceia, em 325 E.C., e foi reafirmada no Concílio de Constantinopla, em junho de 380, pelos bispos. O resultado dessa fórmula de fé está nos Credos de Niceia e Constantinopla. Para que isso acontecesse, muitas heresias, controvérsias trinitárias, foram rechaçadas pela Igreja, ainda por séculos adiante.

No evangelho de João, Jesus, o Filho, constantemente fala de si mesmo como revelação do Pai. “Quem me viu, viu o Pai. Eu estou no Pai e o Pai está em mim” (Jo 14,9-11). Jesus envia, assim como o Pai, Espírito Santo para os apóstolos (Jo 14,15-17; 20,22). O amor está sempre presente no evangelho de João.

A relação trinitária é a da unidade na diversidade. Para entender isso, permita-me outro exemplo. A comparação da Trindade com a água.[2] Conforme sua temperatura, podemos encontrar a água em três estados: líquido, sólido (gelo) e gasoso (vapor). Trata-se, no entanto, da mesma água em formas diferentes. O líquido é o Pai, que é a base de tudo, que está em toda parte, com a sua manifestação plena. O gelo é a manifestação de Deus-Pai no Filho, no Jesus histórico. O vapor, a brisa é a manifestação de Deus-Pai no Espírito Santo que nos dá o vigor, o frescor da vida, embalado pela presença o Pai e do Filho. Em qualquer estado, a água sempre será água. Viu, agora, como assim é fácil entender esse mistério de fé?

Uma última consideração. Se a Trindade é, essencialmente, a unidade na diversidade das pessoas, isto é, um é o mesmo Deus que nos desinstala e nos coloca sempre em ação, haveremos de reconhecer que vivemos num mundo plural, na diversidade de dons, de opiniões, e de modos de ver o mundo na Igreja, na sociedade e na política. O grande desafio do ser trinitário é respeitar as diferenças. Essa foi a mensagem central da Campanha da Fraternidade de 2021.

A Trindade é, sim, a melhor comunidade, como escreveu Leonardo Boff, [3] um mistério carregado de uma energia libertária capaz de eliminar todas as formas de opressão, possibilitando a inclusão em todos os sentidos, no social, no econômico, no religioso etc. E tudo só será possível, por causa de dois motivos: a) o princípio trinitário é o amor que nos une nas diferenças; b) se um dia fomos batizados, voltando à pergunta inicial dessa reflexão, é porque “o batismo é a iniciação à vida trina de Deus, que é indispensável da vida de Deus com cada criatura ao longo do tempo – passado, presente e futuro. A participação nessa vida trina é mediada através da vida da Igreja.”[4]

No batismo, o Espírito Santo nos impulsiona para missão. Na ressurreição de Jesus, voltamos para os braços, para a casa do Pai, de onde viemos. Na eternidade do tempo, somos amor, somos trinitários.

 


[1] Doutor em Teologia Bíblica pela FAJE-BH. Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de exegese bíblica. Membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de dez livros e coautor de quatorze. Último livro: O Medo do Inferno e a arte de bem morrer: da devoção apócrifa à Dormição de Maria às irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte (Vozes, 2019). Caso se interesse por aulas sobre Bíblia e apócrifos, inscreva-se no nosso canal no You Tube: Frei Jacir Bíblia e Apócrifos ou https://www.youtube.com/c/FreiJacirdeFreitasFariaB%C3%ADbliaAp%C3%B3crifos

[2] Paróquia São Sebastião, Diocese de Teresina. Santíssima Trindade. Disponível em: https://semeandocatequese.wordpress.com/2016/10/11/santissima-trindade-dinamica-2/

 

 

[3] BOFF, Leonardo. A Santíssima Trindade é a melhor comunidade. Petrópolis: Vozes, 1989.

[4] GAILLARDETZ, Richard. Trindade: a relação amorosa define o próprio ser de Deus. National Catholic Reporter, out. 2016. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/560853-trindade-a-relacao-amorosa-define-o-proprio-ser-de-deus