O SIMBÓLICO E O REAL QUE EMANAM DE PEDRO, DE PAULO E DE FRANCISCO, O PAPA!

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 O SIMBÓLICO E O REAL QUE EMANAM DE PEDRO, DE PAULO E DE FRANCISCO, O PAPA!

 

Prof. Dr. Frei Jacir de Freitas Faria, OFM[1]

 

Pedro e Paulo, dois grandes personagens e fundamentos do cristianismo da primeira hora, inspiram a nossa reflexão de hoje. Qual o papel deles na formação do cristianismo? Por que eles se tornaram os protetores de Roma? Por que eles são considerados colunas da Igreja? Qual a relação de Pedro e Paulo com o martírio? Por que, ao celebrá-los, rezamos pelo papa? Qual a importância do Papa Francisco para a Igreja?

Os nomes Pedro e Paulo já nos revelam algo da missão de cada um deles. Pedro significa pedra e gruta escavada na rocha. Paulo, por sua vez, de baixa estatura. Já Saulo, primeiro nome de Paulo, antes de sua conversão, é a forma grecizada de Saul, vindo a significar: o implorado.

Paulo lutou fervorosamente contra o cristianismo e a favor dele. De perseguidor, tornou-se o maior missionário no anúncio de Jesus ressuscitado. “Em vão seria a nossa fé se Cristo não tivesse ressuscitado” (1Cor 15,17), pregava com ardor, mesmo não tendo conhecido Jesus de Nazaré. Comumente se diz que Pedro pensou a igreja internamente, e Paulo, externamente. Ambos conheceram a morte por meio do martírio, entre os anos de 64 e 67 E.C., em Roma. Paulo morreu decapitado, e Pedro, crucificado de cabeça para baixo.

 O bispo Dâmaso de Roma, entre os anos de 366 e 384, instituiu o culto anual a Pedro e Paulo, que passou a ser celebrado no dia 29 de junho como padroeiros da capital do império.  Com isso, o império, de perseguidor passou a tê-los como padroeiros do cristianismo, agora católico, isto é, universal, e romano.[2] Assim, o bispo de Roma, que é o primeiro papa, passou a ser referência para todo o mundo cristão. Por isso, hoje celebramos também o dia do papa. 

At 12,1-11: a sina do três e chamado para a missão

Atos dos Apóstolos nos dá uma informação que se tornara uma prática comum do império romano em relação aos cristãos: os discípulos são martirizados, mortos pela espada ou encarcerados, o que agradava aos judeus (v.3). Pedro, preso pela terceira vez por ordem de Herodes Agripa I, esperava o momento de sua morte, possivelmente após a festa da Páscoa. Era noite. Um anjo do Senhor, isto é, Deus mesmo, vem ao seu encontro. Miraculosamente as correntes se rompem e as portas se abrem. Pedro, iluminado por uma luz, é convocado a colocar-se de pé, vestir-se e calçar as sandálias.

Nesse episódio, destacam-se algumas relações simbólicas. Pedro, que havia negado Jesus três vezes (Mt 26, 69-75), outras três, sido interrogado por ele se o amava (Jo 21, 14-17); aqui, é três vezes preso por anunciar Jesus ressuscitado. O número três nos remete à manifestação de fé judaica do Shemá Israel de Dt 6,4-9: “Escuta, ó Israel, amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, teu ser e tuas posses”.[3] A luz é a presença de Deus, outrora manifestada no Sinai. O anjo é a presença de Deus, que, tendo salvado seu Filho da morte, fez o mesmo com o Pedro.

O anjo convida Pedro a colocar-se na postura de missionário: levantar-se, cingir-se e partir. Portas fechadas serão abertas, apesar dos inúmeros guardas presentes. A comunidade, que se mantinha unida na fé, percebe a ação de Deus que caminha com ela. Pedro é um exemplo de fé e de esperança para todos.

Depois desses fatos, Lucas e a comunidade de Atos silenciam sobre a vida de Pedro. Os capítulos seguintes tratarão de outro grande apóstolo, Paulo. Assim, Atos dos Apóstolos narra atos de Pedro e Paulo, mais que dos apóstolos, como sugere o título do livro. Fato que também comprova a importância colossal dessas duas personagens primevas do cristianismo.     

 

2Tm 4,6-8.17-18): Paulo e o simbolismo do atleta

 

Essa leitura é uma das páginas de rara beleza literária da Bíblia. Paulo, assim como Pedro, tem consciência de que sua hora está chegando. Sabedor disso, ele afirma: “Combati o bom combate, terminei a minha corrida, conservei a fé” (v.7). Paulo sabe que, assim como o mestre que foi abandonado diante dos tribunais (Mt 26,31), ele deveria perdoar a todos (v.16). E, além disso, testemunhar o ressuscitado a todos os povos (v. 17b). 

A imagem simbólica de um Paulo esportista é fenomenal. Paulo, o pequeno, foi um lutador na fé. Paulo caminha para a morte, o martírio, sabendo que o mesmo Senhor Jesus que sempre esteve ao seu lado, o salvará e o levará para glória do seu reino celestial (vv.17-18).  A coroa de sua vitória olímpica é outra, a da justiça e da imortalidade. Paulo tornou-se um atleta imortal do ressuscitado, jamais esquecido pelos guerreiros cristãos de ontem e de hoje. Um símbolo que permanece vivo no meio de nós.

  

Mt 16, 13-20: Pedro e os simbolismos da pedra, da gruta e da chave

O evangelho inicia com uma pergunta de Jesus sobre o que o povo pensava sobre ele, e termina com Pedro sendo instituído como liderança, referência para a igreja primitiva.

Em Cesareia de Filipe, longe do poder político e econômico, Jesus lança a pergunta: “Quem sou para o povo e para vocês, meus discípulos?”. O povo, respondem os discípulos, dizem que você é João Batista, Elias, Jeremias ou um dos profetas. Ao que Pedro, de forma contundente, toma a palavra e lhe diz: “Você é o Messias, o Filho de Deus vivo” (v.16). Essas opiniões eram importantes para Jesus e para a comunidade de Mateus que, ao escrever o seu evangelho, via nelas um dos pontos cruciais de sua narrativa: a messianidade de Jesus. Ademais, elas demonstram a relação entre Jesus e a tradição de Israel.

A menção do profeta Elias revela a sua importância para os judeus. Segundo a tradição, ele, após ter ido ao céu em um carro de fogo (2Rs 2,1-18), voltaria. Na celebração do jantar de Páscoa, os judeus reservam um lugar especial para ele. No final, solenemente, a porta da casa é aberta para receber Elias no convívio familiar. A novidade, no entanto, é a resposta de Pedro. A convivência com o mestre lhe deu a certeza de que ele é o messias, o Cristo, o ungido, o Filho de Deus vivo (v.16).

Da resposta de Pedro emergem outras relações simbólicas: Pedro recebe as chaves do reino; é confirmado como liderança do grupo; é chamado de pedra e gruta, sob e sobre a qual seria edificada a igreja, a comunidade que nasceria do seu seguimento. Analisemos esse último simbolismo. Jesus lhe diz: “Tu és Kepha (cefas), e sobre ela edificarei a minha igreja.” Qual é o significado das palavras de Jesus a Pedro, ao referir-se ao seu nome como pedra, em aramaico, Kepha? Esse substantivo não teria também outra significação?

Naquele tempo, o povo tinha o costume de escavar as rochas para daí tirarem pedras para construir casas. Os buracos formados nas rochas recebiam, na língua familiar, o aramaico, o nome de Kepha. Daí que Kepha pode ser também entendido como gruta escavada na rocha. Aos pobres restava o infortúnio de morar nessas cavernas ou grutas. Kepha traduz também o substantivo grego Pétros (Pedro). Então Pedro não significa pedra? Sim, mas tomado no sentido anterior, pode significar gruta escavada na rocha. Desse modo, Jesus, então, teria dito a Pedro: “Tu és gruta escavada na rocha, e sob (debaixo) dessa gruta, onde vivem os pobres, aí edificarei a minha Igreja”. [4]

Considerando o que foi dito acima, há espaço para duas afirmações hermenêuticas plausíveis: a) Pedro representa a rocha, a pedra da nova comunidade de fé, que sabe quem é Jesus e quer anunciá-lo e vivenciá-lo, tendo Pedro como seu líder; b) Pedro é a igreja dos pobres que vivem nas grutas de ontem e nas favelas e barracos de hoje, lugar onde a igreja deveria estar, mas, infelizmente está cada vez mais se distanciando. As igrejas evangélicas proliferam porque os católicos não foram capazes de dar respostas aos problemas da pós-modernidade. Não que elas também saibam, mas, pelo menos, estão mais próximas dos empobrecidos, na vivência de seus problemas econômicos e existenciais, mesmo que tirando proveito da situação. 

Pedro tem as chaves que abrem portas e ligam todos com o Eterno, o divino. Mais tarde, as comunidades entenderam que a liderança de Pedro foi repassada para aqueles que o sucederam, os quais receberam o nome de bispo. Destaque para o de Roma, que se tornou também papa, chefe da Igreja católica (universal), apostólica e romana. Nisso tudo, o simbólico se torna real e o real se alimenta do simbólico.

 

Papa Francisco: a realidade da leveza no árduo labor de uma Igreja das grutas

 

Nos últimos anos, a Igreja católica foi agraciada com a escolha de um argentino, Mário Bergoglio, homem de profunda intuição pastoral e próximo dos empobrecidos, para ser bispo de Roma e papa do mundo católico. Vindo da periferia desse mundo, Bergoglio virou Francisco, para seguir as pegadas do pobrezinho de Assis, a bucólica e mais medieval de todas as cidades da Úmbria italiana.

Quando da sua eleição como papa, Francisco declarou: “Na eleição, eu tinha ao meu lado o arcebispo emérito de São Paulo, um grande amigo. Quando a coisa começou a ficar um pouco ‘perigosa’, ele começou a me tranquilizar. E quando os votos chegaram a 2/3, aconteceu o aplauso esperado pois, afinal, eu havia sido eleito Papa. Ele me abraçou, me beijou e disse: ‘não se esqueça dos pobres’. Aquilo entrou na minha cabeça. Imediatamente me lembrei de São Francisco de Assis e desejei uma igreja pobre, para os pobres. O nome apareceu no meu coração. Para mim, São Francisco é o homem da pobreza, o homem da paz, o homem que ama e protege as criaturas.”

E é isso que o Papa Francisco tem feito, lutado com fervor evangélico, na simplicidade e espontaneidade que lhe são peculiares, para direcionar a Igreja para as grutas escavadas das rochas modernas. Não tem sido fácil. Não são poucas as resistências encontradas entre os que querem uma Igreja forte e poderosa sobre a rochas do poder.

 

Conclusão

Pedro e Paulo são âncoras da nossa fé. Eles representam um misto de fraqueza e de fé, de desespero e confiança nas palavras e na ressurreição de Jesus, mas também de rocha, pedra que sustenta, e de gruta, a comunidade que acolhe os pobres e desvalidos.

 Em nossos dias, urge a união da Igreja em torno da pessoa do Papa Francisco, em sintonia com as igrejas locais, as comunidades, os padres, os leigos e os bispos a partir dos ensinamentos que a tradição da fé nos legou, de modo que possamos construir um mundo e um ser humano novos. Uma sociedade que seja incapaz de fazer festa com a morte de Lázaros.

 Com Pedro, Paulo e Francisco, somos chamados a testemunhar o reino e a continuar a sua construção, lutando por um mundo de paz e de bem alicerçado ‘sobre e sob a rocha’ da vida moderna.

 


[1] Doutor em Teologia Bíblica pela FAJE-BH. Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de exegese bíblica. Membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de dez livros e coautor de quinze. Último livro: O Medo do Inferno e a arte de bem morrer: da devoção apócrifa à Dormição de Maria às irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte (Vozes, 2019). Canal no You Tube: Frei Jacir Bíblia e Apócrifos ou https://www.youtube.com/c/FreiJacirdeFreitasFariaB%C3%ADbliaAp%C3%B3crifos

[2] FARIA, Jacir de Freitas, Apócrifos aberrantes, complementares e cristianismos alternativos. Poder e heresias! Introdução crítica e histórica aos apócrifos do Segundo Testamento, 2 ed. Petrópolis: Vozes, 2010, p. 136.

[3] FARIA, Jacir de Freitas. Releitura do Shemá nos evangelhos, RIBLA, 40, Petrópolis: Vozes, p. 52.

[4] FARIA, Jacir de Freitas, O outro Pedro e a outra Madalena segundo os apócrifos, 4 ed. Petrópolis: Vozes, 2010, p 28-31.